MITsp

Metacrítica – Eu não sou bonita

Reflexões da perturbação
Luciana Romagnolli, do Horizonte da Cena, em diálogo com Suely Rolnik e Coletivo de Críticos (*)

Angélica Liddell não se identifica como feminista, embora as questões invocadas em sua obra coincidam com a pauta do movimento. A distinção provavelmente está nos modos como a artista espanhola as problematiza. Causa estranhamento, à primeira vista, a postura da performer em Eu não sou bonita. Isso se deve a um discurso margeado por estereótipos do ser-homem e ser-mulher como dois papéis sociais definitivos e associados, respectivamente, ao binômio agressor-vítima, sem escapatória. Contudo, como se disse na ocasião de Escola, do chileno Guillermo Calderón, é preciso desconfiar dos discursos que aparentem uma integridade. E o de Liddell, por mais que brade uma radicalidade, não é menos poroso.

É preciso desconfiar também da performer e de sua construção cênica autorreferencial. Os elementos (supostamente) reais da narrativa e da materialidade da cena deixam de sê-lo quando tomados como componentes de uma poética, ainda que mantenham um apelo e uma força de realidade. A fabulação de um abuso sexual não reverbera com a mesma contundência de um depoimento de abuso que se entenda como real. Um cavalo vivo em cena ultrapassa o simbólico (sem deixar de sê-lo), é uma força da natureza, domesticada só em parte, posto que não obedece a vontade da performer e sua ação comporta o imprevisível – a ameaça do perigo. É com essa sensação do real e sua capacidade de despertar no espectador uma percepção aguçada, urgente, que Liddell joga.

Quando se apresenta como uma mulher indelevelmente marcada por um abuso sexual sofrido na infância, a artista instaura essa zona imprecisa entre real e ficcional e de indistinção entre seu corpo fenomênico e a figura dramática, de modo que o público tende a identificar a figura que se apresenta como a própria Liddell – cujo sobrenome de batismo é outro; este emprestou da verdadeira Alice (Liddell) que inspirou Lewis Carroll. Tomado como real o ato de abuso, está o público diante de uma vítima real e, portanto, o posicionamento que lhe é demandado não se acomoda numa relação palco/plateia ativo/passiva. Ileana Diéguez (2011) observa que “o retorno ao real faz um apelo ao entrecruzamento entre o social e o artístico, acentuando a implicação ética do artista”. A do espectador também.

A performer-atriz Angélica Liddell ocupa então uma posição liminar, no “entre” do tecido cultural, cujas potencialidades previstas por Turner (1988) comportam a outorgação de poder aos fracos, dentro de experiências arriscadas no interstício entre dois mundos. O corpo de Liddell não é significante, mas produtor de presença e de sentidos, articulados num campo de ações concretas, poéticas e simbólicas que permitem a reelaboração simbólica do trauma e o empoderamento daquele antes assujeitado.

Liddell opera na zona do desconforto. O mal-estar é uma chave dramatúrgica importante em todos os aspectos da encenação. Ao público, oferece-o, entre outras formas, na narrativa imagética com que descreve o desejo sexual por crianças, sugerindo à imaginação daqueles que a ouvem imagens geradoras de intenso mal-estar por sexualizar o corpo infantil e deslocar o espectador para a posição do desejante e, portanto, potencial opressor.

A artista transita por territórios tabus também na complexa cena de insinuação sexual ao cavalo. Esse momento deixa latentes ao menos três leituras contraditórias. Há uma relação de poder exercida por Liddell ao portar um corpo que deseja (justamente o que é impedido às mulheres na construção cultural que ela denuncia). Uma relação de impotência diante do agressor (a pequenez da artista-criança-vítima diante cavalo-soldado-agressor). E uma relação de mal-estar que invade a sexualidade feminina na nossa cultura. A impossibilidade de síntese – a coexistência dessas (e outras possíveis) leituras concomitantemente – está na base da força maior que a obra tem: a de plantar angústias e incômodos que a mantenham fermentando na mente e no corpo do espectador dias além.

A domesticação exercida pela cultura sobre o corpo feminino e que o coloca à mercê do desejo doentio de posse e subjugação por parte do macho é alvo de críticas diretas no campo discursivo que expõem as entranhas do funcionamento sociocultural determinante do universo limitado de possibilidades do masculino e do feminino em uma sociedade patriarcal e dicotômica.

Liddell sintetiza essas carapuças da divisão binária das identidades de gênero em dois extremos: à mulher cabe somente ser boa ou má chupadora (a legitimação está no prazer masculino, nunca no feminino); ao homem, ser o mal. Esse discurso extremista se constrói pelo recurso a símbolos que acenem para realidades mais amplas. Dois deles: a fotografia de uma mulher de beleza “padrão” praticando sexo oral remete às imagens publicitárias e pornográficas e provoca em parte do público feminino risos desencaixados, que entram em fricção com o discurso (e Liddell parece buscar essas arestas), apontando para a manutenção da crueldade machista também no comportamento feminino; e a cruz florida, em referência às mais de mil mortes e desaparecimentos (e outros incontáveis casos de estupro) de mulheres em Ciudad Juárez, no México, cenário-símbolo do ódio à mulher. Liddell se volta contra uma sociedade patriarcal que perpetua a violência de gênero e trata os espectadores como cúmplices e agressores – culpados.

A violência autoinfligida pela artista por meio de cortes novamente faz irromper o real em cena. Ao mesmo tempo, a ação pesa como símbolo da imolação praticada contra a mulher historicamente. Há ainda uma possibilidade de leitura psicanalítica (Liddell tem formação em psicologia) que a remeta à atitude masoquista, pela qual a posição de gozo coincide com a posição de submissão na articulação entre erotismo, dor e subjetividade, além de um ato de multiplicação da dor para exercer controle sobre ela. Liddell se aproxima de uma teatralização do excesso, dando extravasamento à violência e exibindo os martírios da carne, para colocar diante do espectador a “evidência espetacular do sofrimento”, como diz Diéguez, oferecendo-lhe a escuridão do trauma.

Na forma hiperbolizada de representação do sofrimento por meio da restauração da violência contra si a cada apresentação de Eu não sou bonita e do discurso extremista sobre o binômio homem-mulher, cabendo ao primeiro palavras de ódio, vê-se que Liddell se afasta do exercício da alteridade rumo à exacerbação do eu: não lhe interessa a voz do “outro” (homem) quando o outro por definição é a mulher. Não há dois sujeitos quando um é assujeitado. A artista busca a confusão entre essas categorias de sujeito e objeto, sugerindo a partir de si a identificação com toda história da violência de gênero. A denúncia do horror imposto à mulher é tensionada até o insuportável à medida que Liddell encena o limite no qual não há saída para o homem além do papel de opressor, nem para mulher além do de oprimida. O mecanismo terapêutico não se direciona à artista, mas ao público, uma vez constituído por Liddell o espelho dessa limitação à qual cabe ao público – não à artista – reagir.

A caracterização com longos cabelos e vestes pretas, a afirmação da feiura e o ódio ao masculino aproximam Liddell ainda da imagem estereotipada da bruxa – aquela ilustrada em livros infantis e perseguida pela Inquisição. Categoria na qual a mulher que não se encaixasse aos padrões culturais vigentes poderia ser aprisionada. Eu não sou bonita é uma tomada de posição: a escolha não pelo imaginário da princesa, destituída de erotismo e de poder, mas pelo da bruxa, portadora de um poder acima dos domínios dos homens. Essa leitura, como observou a crítica Daniele Ávila, permite tomar “as manifestações de ódio e as acusações proferidas na cena como parte das invocações de um gesto de bruxaria”, que “também se dão em um plano simbólico-performático”. Liddell agencia outros saberes além dos discursivos e terapêuticos, dominados num contexto cultural logocêntrico e patriarcal. Sua explosão das paredes que limitam o ser mulher e o ser homem (dois componentes do mesmo binômio, afinal) passa pelo recurso às forças do corpo. Simultaneamente, uma presença imanente e uma presença transcendente.

Ps. A MITsp trouxe, entre outras reflexões tantas, a experiência redescoberta do teatro como acontecimento. Enquanto o crítico Luiz Fernando Ramos reafirmou a importância de que a crítica veja além dos “acidentes” da apresentação, lançando um olhar sobre o espetáculo que constitua uma história do teatro, há de se considerar que é justamente no acidente que o teatro se faz, ou seja, não existe na idealização prévia ou posterior do que o espetáculo deveria ser, mas somente em seu acontecer num tempo-espaço de encontro com o espectador.

Assistir ao episódio dois de Bem-vindo a casa num grupo de 15 pessoas das quais a maioria não viu o primeiro episódio transforma o convívio e, consequentemente, a experiência. Assistir ao espetáculo Eu não sou bonita com uma interrupção em seu decurso altera também a experiência, portanto, o espetáculo. Pode-se, quiçá, projetar o que seria o mesmo espetáculo no campo das ideias. Mas a percepção se dá no mundo físico. A irrupção do real pela intervenção dos manifestantes pró-animais, que, por minutos, coabitaram o palco com Liddell, sendo inicialmente aceitos sem surpresa pela artista, reforçaram o caráter de realidade do que acontecia sobre o palco e a impressão de que era a própria Angélica quem agia, ressaltando o corpo fenomênico sobre o corpo representacional. Outro efeito, provavelmente mais grave do ponto de vista da expectação, foi a quebra de um desenho de forças seguido pela artista, que afeta justamente a dimensão não-semiotizável da experiência teatral, fundamental em um trabalho como Eu não sou bonita.

(*) O Coletivo de Críticos é um ajuntamento temporário de críticos, com presença na internet e atuação em rede. Inclui integrantes dos sites-blogs-revistas eletrônicas Antro Positivo (SP), Horizonte da Cena (MG), Questão de Crítica (RJ), Satisfeita, Yolanda? (PE) e Teatrojornal (SP).

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