Peter Pál Pelbart analisa Gólgota Picnic: leia aqui o texto na íntegra
Gólgota Picnic, ou sobre a teologia da destruição, Peter Pál Pelbart
Deveria ser proibido falar depois de uma apresentação de teatro, música, performance. À saída de uma peça, prefiro mil vezes ficar no meu canto e deixar que o silêncio e o tempo façam seu trabalho subterrâneo e inconsciente, antes de enfiar palavras precipitadas entre a experiência e o pensamento. Não impede que eu ache louvável a iniciativa dos organizadores deste Festival, e lhes seja grato pelo convite.
Minha primeira observação é sobre a presença da temática cristã tanto na primeira peça apresentada no Festival, Sobre o conceito de rosto no filho de Deus, de Romeo Castelluci, quanto no Gólgota Picnic, de Rodrigo García. Mais. Intriga-me que ambas se desdobrem ao mesmo tempo numa chave iconoclasta e iconólatra, o que, como o mostrou Laymert Garcia dos Santos no seu notável comentário sobre a primeira peça, implica numa estranha reversibilidade, onde o ataque ao ícone do cristianismo apenas reitera sua eficácia e prevalência, onde a desmontagem dele não impede que o dispositivo do olhar assedie o gesto iconoclasta, olhar que paira sobre o todo como um horizonte indepassável, seja o rosto, num caso, seja a desolação, que é também uma modalidade de prece. Rodrigo García diz que a Bíblia é uma obra literária que sempre o apaixonou, pois é, como disse Borges “o ápice de literatura fantástica”. E ele acrescenta: “A vida louca e a utópica filosofia de Cristo estarão vigentes hoje e sempre, visto que injustiças haverá eternamente e maneiras milagrosas e arrebatadoras de as combater, também”. Não se trata para ele de voltar a temas bíblicos por adoração religiosa ou gratuidade literária, mas afim de usá-los para falar do que nos rodeia. Por conseguinte, o título original dessa peça, As sete últimas palavras de nosso Salvador na cruz, título do oratório de Haydn, não era o tema da peça, propriamente dito, porém, como o explicou o diretor, a partir de seu encontro casual com o pianista Marino Formenti num táxi e a conversa em torno dessa peça de Haydn na sua versão para piano, foi o “disparador para assuntos contemporâneos”.
É nesse sentido que se deveria apreender seu esforço e esse desvio – por vezes é preciso de um longo desvio para falar de nós mesmos, o mais longo desvio, e no pensamento bem como nas artes, esses desvios costumam ser produtivos. Portanto, os desvios são antes pretextos. E Rodrigo García não esconde o jogo: “Tudo é um pretexto para falar da vida de hoje, da perda da Fé. Quer dizer: eu não sou crente. Tenho fé no homem, que não é uma besta. Às vezes, quando alguém faz obras aparentemente obscuras ou negativas ou críticas, há uma fonte de luz, uma esperança que as coisas melhorem.” Deixo de lado as considerações mais simplórias se isso é otimista ou pessimista, pois em arte essas categorias são inócuas. Importa que o caráter corrosivo ou a exposição da chaga do presente pode ser o testemunho da mais alta vitalidade, de modo que a presença da morbidez em estética está num plano inteiramente distinto do que esses juízos contrastantes permitiriam supor.
Assim, com toda a paixão que tem o encenador por Giotto, Rubens, Bellini, Antonella da Messina, não se trata de admirá-los ou ilustrá-los ou transpô-los, mas de usá-los para fazer sentir nossa miséria, seja no mais trivial acidente de carro, seja no latido de um cão. É assim que nesse espetáculo cada um se vive como Cristo, por quinze minutos, como diria Andy Warhol, e nem todos têm a sorte de serem retratados para a eternidade. Mas cada um tem seu calvário para contar e a partir dele deplorar seu destino ou o estado do mundo. Sim, os Cristos se multiplicam nas histórias e nas imagens, na desolação e nas perguntas, nas associações dos personagens do picnic no Gólgota. Para ficar no registro blasfemo que não é estranho ao autor, lembra o filme de Syberberg, Hitler, um filme da Alemanha, onde a imagem de Hitler se multiplica por toda parte, sete horas de um espetáculo fantasmal, verdadeiro teatro da mente alemã, indo dos mitos à música, do Graal aos castelos da Baviera, De Ludwig II a Karl May, dos objetos de fetiche pertencentes ao Führer às obras de arte saqueadas por ele, figuras miniaturizadas, cães e águias gigantes, caixões fumegantes, cabeças boiando em águas borbulhantes, bonecos de toda sorte, manequins, marionetes, e ao fundo do palco projeções frontais de documentários da época nazista, slides, superposições, gravuras, projetos arquitetônicos, tudo ao som de marchas militares fusionadas à musica de Wagner, entrecortadas pelos patéticos discursos de Goebbels, por manifestos futuristas, e a cada tanto a meditação sensual de um ator que representa o próprio Syberberg, como aqui temos por vezes a meditação também sensual de um ou outro, e não sabemos se ele representa Rodrigo Garcia ou qualquer um de nosso tempo.
Na obra, essa multiplicação crística se estende a seu modo: o ultraje religioso, a blasfêmia, a heresia, o picnic no monte da crucifixão, o anjo decaído que inspirado do quadro de Giotto Lamento por um Cristo morto salta no céu como atleta de esportes radicais na sua queda infindável e estrondosa… quanta provocação, quanta profanação, quanta transgressão, quanta destruição é preciso pôr em cena para dar a ver “o estado das coisas”? A nudez, o sexo, a carne moída, o sanduiche de minhocas, as cabeças de repolho, as engenhocas domésticas, a história da pintura concebida como uma iconografia do terror, seus artistas como propagadores de perversão, e a imensa torrente verborrágica que num estertor da linguagem vomita referências pictóricas, relatos cotidianos, pseudomeditações, para compor esse caótico panorama sobre o estado degradado – nesse sentido, haveria um paralelo com a degradação física que mostra Castelucci, à sua maneira, apesar do contraste imenso no tom e nos recursos – pois à diferença dali, aqui tudo é excesso, catarse, saturação, proliferação, como se fossemos invadidos e trespassados por palavras e gestos nauseabundos – tudo isso, como disse, compõe um afresco vertiginoso sobre a contemporaneidade. A multiplicação dos pães de hamburguer perfumados cobrindo o planeta; “Dinheiro, por que nos abandonaste?”, onde nosso modo de vida parece ter encontrado sua baixeza ignóbil, mas também desesperada, e uma megamáquina se encarrega de o perpetuar, de produzir a falta, a violência, o descaso, a gregariedade, também a lamúria. Como diz Rodrigo García: “Há um sistema extremamente eficaz que existe para nos impedir de viver de outra maneira. Há um sistema extremamente poderoso que nos faz acreditar que estamos vivendo de outra maneira. O que é comum a todo meu trabalho é que nunca deixei de dizer que se pode viver de outra maneira. Essa certeza está sempre presente em meus espetáculos, mesmo quando é algo relativamente inconsciente, como um bater de asas, ou uma linha musical de baixo contínuo, algo que pulsa e é inconsciente – qualquer que seja a forma de meus espetáculos.”
O caráter polêmico e transgressivo, blasfemo e herético, e que em 2011 na França provocou ondas de vigília e protesto, com manifestações do alto clero da Igreja quando da apresentação da peça, é uma forma cuja eficácia deveria nos interrogar em sentidos diversos. Tudo choca mas não choca mais, já que a transgressão perdeu sua eficácia de deslocamento. Ademais, não temos mais fé, mas não deixamos de desejar alguma fé, nem que seja neste homem que pisa com descaso sobre aquilo que antes era objeto de veneração, desde que isso se dê na forma de um espetáculo. Como se o século que deixamos para trás, talvez o mais ateu entre todos, onde a revolução, o stalinismo, o nazismo e o neoliberalismo desembocaram numa estranha necessidade de medir o que restou do homem à luz de um olhar crístico, já que tudo mais desmoronou, como se fosse ele o único capaz de dizer o tamanho da dor e da desesperança… paradoxalmente, é assim que se reintroduz, e através de um remoto luar de humanismo, a recôndita religiosidade que os holocaustos pareciam ter evacuado para sempre. Bataille foi um dos últimos autores que não percebeu que através do excesso, da transgressão, do êxtase místico ou erótico, sua dialética estava presa ainda àquilo que ele pensava destruir. Talvez seja este o drama de uma espécie de teologia da destruição, hoje. Penso no domínio da filosofia, que Rodrigo García diz tê-lo ajudado a livrá-lo da religião, mas quantos autores se debruçam sobre o destino do homem sob o signo da luz divina que no entanto pretendem contestar, ou constatam desaparecida, e assim ela se insinua de maneira a mais insidiosa e inaparente, justamente quando os deuses e os homens deram-se as costas, como disse Hölderlin.. Isso é verdade para Heidegger, isso é verdade para Agamben, isso é verdade até para Badiou, ironicamente, em todo caso para o século sedento de uma nova fé. Como se no final da batalha, e ao avistar os corpos esquartejados e os cadáveres fumegantes, só nos restasse olhar para cima e perguntar: “Deus, Deus, por que nos abandonaste”? Será que essa atitude não guarda estranhas cumplicidades com a máquina que produz expectativa e desamparo?
Pensemos numa espantosa versão da vida de Jesus depois de morto, escrita por D. H. Lawrence e intitulada O Homem que morreu. Eis Jesus vagando pelo mundo do qual fora expulso, e tomado de náusea, vazio, desilusão, sentindo que para ele o desejo se extinguira, pede refúgio na casa de um casal de camponeses. É apenas quando cruza um galo preto e laranja, eriçado, esplendoroso, fogoso, cantando alto em desafio ao mundo entristecido, que O homem que morrera detecta no mundo aquilo que ele mesmo havia perdido, a necessidade de viver. E eis que o homem que morrera fica perplexo diante do fogo que arde no galo e que, pensa ele, jamais arderia no camponês simplório que o acolhera, pois neste não havia “renascimento”. A originalidade da versão de Lawrence é que o Salvador apenas volta a sentir-se vivo quando entende que sobreviveu à sua missão: “Este é meu triunfo… Morreram em mim o mestre e o salvador; agora posso viver minha vida”. E ele entende que há no corpo e na existência uma pequena vida e uma grande vida, e que de nada adianta ficar afundado na pequena vida ou aspirar apenas à grande vida, que é só quando elas se entrelaçam que ele pode ser salvo de sua salvação. “A menos que o englobemos no dia maior, e coloquemos a vida pequena no círculo da vida maior, tudo é desastre”. Só através de um tal entrelaçamento entre o pequeno e o grande pode ele aderir ao mundo dos fenômenos e de seu borbulhar, sem soçobrar no desastre. É em meio ao arrependimento que ele pregunta: “E por que motivo queria eu que tudo borbulhasse uniformemente? Que pena, ter eu pregado para eles!” Ele se dá conta que respondia a um temor vindo dos homens, pois era o medo final da morte que os enlouquecia. Como diz ele: “todos, numa louca afirmação do eu, queriam lhe impor uma compulsão, violar sua solitude intrínseca. Era esta a mania das cidades e sociedades e multidões – impor compulsões aos homens, todos os homens. Tanto os homens quanto as mulheres estavam enlouquecidos pelo medo egoista de sua propria nulidade.” E ele pensava em sua missão, em como havia tentado impor a compulsão do amor a todos os homens. E a velha náusea voltou-lhe. Pois não havia contato em que não houvesse uma sutil tentativa de impingir uma compulsão.” O amor compulsório para enfrentar o medo da morte.
Mas O homem que morrera apenas precisou do galo esplêndido para despertar de sua morte, para desfazer-se de sua missão, para voltar à terra. Ele precisou da garbosa vitalidade da ave, e ao cruzar alguns fiéis que não o reconhecem mas acreditam no poder de Cristo, ele retruca zombeteiro que ele, ao contrário deles, “acredita na ave”, não na vida futura. Em vez de pregar a fé no Pai ou na imortalidade da alma, ele mostra o galo, ele admira o seu canto, ele adere à perenidade da terra, ao pulso do corpo. Em A deposição da Cruz, de Rubens, que aparece na peça, temos o cão em movimento que se destaca da tela, e cuja pata, segundo a especulação jocosa do personagem, se apoia na perna do pintor, que estaria fora do quadro, ou o cão talvez represente o próprio pintor.. Jesus e o galo, Cristo e o cão, o cão-pintor que foge à sua representação torturante..
Jesus e Cristo: mesmo Nietzsche, na sua diatribe anticristã, havia entendido a diferença entre um e outro, a conduta do Redentor, por um lado, e a fé de Paulo, por outro. O Redentor como aquele que não fundou uma nova fé, mas uma nova conduta, ao abolir as oposições, o pecado, o perdão, a rendenção, numa espécie de beatitude de assentimento, e não de ressentimento. Por outro lado a Igreja de Pedro, que se apoia sobre o terror e a tortura. E é Nietzsche que, ao invés de atacar a fé, melhor analisou sua fonte, a necessidade da fé, ou o desejo de fé. Assim como, ao invés de atacar a verdade, ele destrinchou a necessidade da verdade, a saber, o desejo de segurança. Mas eis a frase lapidar daquele que filosofou a marteladas: “A crença é sempre desejada com a máxima avidez, é mais urgentemente necessária onde falta vontade: pois é a vontade, como emoção do mando, o sinal distintivo de autodomínio e força. Isto é, quanto menos alguém sabe mandar, mais avidamente deseja alguém que mande, que mande com rigor, um Deus, um príncipe, uma classe, um médico, um confessor, um dogma, uma consciência partidária.”[1] Temos já aqui a série de todos que mandam em nós: Deus, príncipe, classe, médico, confessor, dogma, partido, etc… Nietzsche detecta nessa necessidade de crença e veneração um adoecimento da vontade, e é onde enxerga a fonte das religiões e fanatismos. Em contraposição ao crente, o filósofo chama por um espírito que “se despede de toda crença, de todo desejo de certeza, exercitado, como ele está, em poder manter-se sobre leves cordas e possibilidades, e mesmo diante de abismos, dançar ainda”[2].
Talvez eu já possa, a partir daí, voltar ao que na peça me chama a atenção, a saber, que não se deixa de medir a anarquia do mundo, seus cataclismas, desmoronamentos, escombros, violência, embate físico, mesmo a loucura abjeta do cristianismo, não se deixa de avaliar essa estranha paisagem já lunar a partir de um lânguido anseio de humanidade ou divindade ou eternidade, que um crítico chamou de “desejo por um supersigno que alivie nossa angústia e nos dê segurança”, mesmo que isso se desdobre à luz da mais frenética e compulsiva profanação, seja da pintura, da música ou da religião. Sim, não nos desfizemos do desejo de crença.. Pode ser que vivemos à sombra da morte de Deus, mas também de seu cadáver, que não conseguimos sepultar, de modo que seus avatares ressurgem por toda parte, talvez sobretudo no humanismo que não cessa de ressuscitá-lo, como se não tivessemos encontrado ainda a linguagem e a força, como diria Nietzsche, de estar à altura de nossa descrença, de sair do sistema do juizo, do julgamento, do tribunal, ou da piedade e do sacerdócio, para no embate dos corpos, como por vezes aparece lindamente no palco de Rodrigo García, aludir a uma outra justiça. Para isso, seria preciso partir de um corpo que desafiasse esse complexo sócio-político que Artaud chamou de juízo de Deus, e que nós chamaríamos de um biopoder, que mobiliza corpos e almas. Como o diz Preciado: “Mas se fossem na realidade os corpos insaciáveis da multidão, seus paus e seus clitoris, seus anus, seus hormonios, suas sinapses neurossexuais, se o desejo, a excitação, a sexualidade, a sedução e o prazer da multidão fossem os motores de criação de valor na economia contemporânea, se a cooperação fosse uma “cooperação masturbatória” e não simplesmente uma cooperação de cérebros?” [3] Ou, mais radicalmente: “Ousemos a hipótese: as verdadeiras matérias primas do processo produtivo atual são a excitação, a ereção, a ejaculação, o prazer e o sentimento de autocomplacência e de controle onipotente. O verdadeiro motor do capitalismo atual é o controle farmacopornográfico da subjetividade, cujos produtos são a serotonina, a testosterona, os antiacidos, a cortisona, os antibióticos, o estradiol, o álcool e o tabaco, a morfina, a insulina, a cocaina, o citrato de sidenofil (Viagra) e todo aquele complexo material-virtual que pode ajudar na produção de estados mentais e psicossomáticos de excitação, relaxamento e descarga, de onipotência de controle total. Aqui, inclusive o dinheiro se torna um significante abstrato psicotrópico. O corpo adicto e sexual, o sexo e todos seus derivados semiótico-técnicos são hoje o principal recurso do capitalismo posfordista.”[4] Talvez algo disso apareça na cacofonia da primeira parte.
Mas depois dela, num segundo tempo sublime da peça, que exige do espectador um reajuste no estado de percepção, a música de Haydn tocada como uma prece física, o imenso torso do intérprete (refiro-me aqui a Marino Formenti, o intérprete original, que não esteve no Brasil) que se debruça sobre o piano num corpo a corpo de nervos, carícia e garra, extrai dele bálsamo e elevação. É, diz Rodrigo García, “o momento de rebobinar, lembrar das imagens e das palavras proferidas ao longo do espetáculo, deixar-se levar pela música que se executa nesse campo de batalha que é o cenário desta obra, com os pães destroçados espalhados pelo chão, a pintura no chão, a destruição. Creio que é uma destruição harmoniosa”, diz ele. Pode ser, mas não estou seguro que não haja aí algum signo de salvação. Ao longo da música lemos ao fundo As sete últimas palavras de nosso Salvador na cruz, inclusive a pergunta irrespondível, Deus, Deus, porque nos abandonaste? Como em Castelucci, onde já esgarçado o rosto de Cristo, depois de atacado por dinamites de brinquedo e tomado de assalto por comandos sinistros e rasgada a tela, aparece ao fundo em letras luminosas a frase que parece ser a última, O senhor não é nosso pastor, antes que, no últimíssimo instante, um estouro apaga o não, reafirmando o enunciado bíblico. Laymert assim se pronuncia, a respeito: “Ouso afirmar que Sobre o conceito de rosto no filho de Deus é o sonho iconólatra que perverte o iconoclasta Romeo Castellucci.” E o imperial Pantocrator (aquela matriz bizantina do Salvador que, como o déspota, por trás de sua doçura nos observa e captura, “segue sendo o Senhor das regras do jogo.”
Ora, o Gólgota Picnic é mais caótico, embora o sofrimento a que alude, e que todos revivem deambulando, dançando, se contorcendo ou se esfregando no cenário do lixão social feito de pães e escombros, não é menor do que o do ancião banhado em fezes. Mas aqui temos, ao final da música, um elemento que aparece já no começo, o salto do anjo, desportista radical em queda vertiginosa.. Diz um ator, a certa altura, não cabe saltar da janela, mas saltar para dentro de vocês, ou extinguir-se… É uma bela fórmula, uma aposta, um chamamento.
Em todo caso, o anjo em queda livre não deixa consumar-se a salvação musical: é a mulher de capacete e colant sensual, não é a imagem do desespero, mas do esporte radical, não é a vertigem moral, mas uma certa volúpia. Segundo a teologia cristã, um anjo caído é um demônio, é um antigo anjo que rebelou-se contra o Criador e despencou do Paraíso. Ora, Wim Wenders mostrara anjos que têm inveja dos homens, de sua carnalidade, finitude, dor, e cuja queda é uma celebração. Aqui, é como um clube de esporte, a adrenalina crescente: o mal do século. Entre a adrenalina do salto no Nada e a elevação musical ao Céu, mesmo que culmine no terremoto final do oratório de Haydn, o contraste é brutal, e não há encontro possível, a não ser esse que um espetáculo pode nos oferecer, rasgando ao meio nosso abissal niilismo.
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