Metacrítica – Ubu e a Comissão da Verdade
As artes e o todo
Maria Eugênia de Menezes, do Teatrojornal, em diálogo com o Coletivo de Críticos (*)
Ubu e a Comissão da Verdade é exemplo do que se convencionou chamar espetáculo “multimídia”. Aqui, saberes e linguagens foram amalgamados com a intenção de conceber uma obra híbrida. Expediente caro à contemporaneidade, que preza intersecções e confluências entre artes, mas que também que se relaciona intrinsecamente à trajetória de seu diretor, o sul-africano William Kentridge.
Em 2013, o público de São Paulo teve a chance de se aproximar do peculiar processo criativo desse artista de múltiplas competências. Realizada na Pinacoteca do Estado, a exposição Fortuna reuniu parcela considerável de seus filmes, animações, desenhos, esculturas e gravuras. Entre eles, alguns dos desenhos que integram a montagem vista na MITsp.
A despeito do reconhecimento internacional que conquistou como artista visual, Kentridge não pode ser descrito como um neófito nas artes cênicas. Ubu é parte de um percurso ligado ao teatro. Ele começou ilustrando cartazes de espetáculos – inclusive de uma versão de Ubu Rei. Passou, posteriormente, à posição de ator e encenador. De teatro e de ópera. Outra informação interessante à apreciação da peça a ser analisada é sua formação prévia como cientista político.
Ubu e a Comissão da Verdade toma elementos de (a obra máxima de Alfred Jarry), mesclando-os às audiências da comissão que investigou os abusos e crimes cometidos durante o regime do apartheid na África do Sul. Nessa sobreposição de referências, dá-se um oportuno encontro entre ficção e realidade.
O protagonista grotesco de Jarry impregna o imaginário ocidental justamente como personificação da inveja, da maldade arbitrária e do abuso de poder. Outro achado da produção foi captar o caráter teatral dessas comissões que percorreram a África do Sul entre 1996 e 1998. Em depoimento, Kentridge expôs sua curiosidade por essa espécie de “teatro público” realizado nessas audiências: com testemunhas que tomavam o “palco”, sempre diante de uma plateia, relatando os crimes que sofreram.
Assinada por Jane Taylor, a dramaturgia do espetáculo consegue sustentar a potência satírica da base ficcional de onde partiu. Ressignifica a imagem de Ubu, mantendo suas características originais de bufão bruto, mas sendo capaz de dar-lhe também críveis contornos de um agente de violência do Estado.
Neste espetáculo da Handspring Puppet Company, o uso de bonecos e filmes de animação também pode ser entendido como procedimento dramatúrgico. No campo das artes plásticas, diversos críticos ressaltam a presença de traços altamente narrativos nas construções pictóricas de Kentridge. Essa observação nos serve aqui. Seus desenhos, intencionalmente sujos e mal-acabados, surgem para nos contar uma história. Além disso, o diretor consegue criar uma cena eficiente o bastante para evidenciar, sem que seja necessário recorrer a comentários textuais, o processo de desumanização dos envolvidos na sangrenta saga de perseguição a negros que vigorou no país entre as décadas de 1960 e 1990. A razão não é o sentido que guia essa gama de personagens: alguns deles são animais dotados com recursos humanos, outros são homens retratados como marionetes inanimadas.
Em momento algum, a trama propõe o enfrentamento direto entre o algoz Ubu e suas vítimas. Não existe drama. Os indivíduos são convocados a falar como ecos de um contexto que os ultrapassa. Não interessa personificar suas mazelas, mas entendê-las como fruto de um contexto histórico e de uma determinada prática social.
O humor é o expediente usado pela companhia nessa intenção de “desdramatizar” a situação apresentada. A farsa é, por definição, o gênero que preza pelo exagero. Não à toa, ressaltam-se os traços trapaceiros de pai Ubu, o caráter histriônico da mãe Ubu. A vilania vem exposta em figuras propositadamente caricatas, sem nuances que poderiam nos incitar a buscar razões psicológicas para atitudes ou comportamentos. O fundamento documental que motivou a criação é, de tal maneira, recoberto por essa ‘ultra ficção’, que tende ao absurdo. Adentramos gradativamente em um território no qual nossas regras, ‘humanas’, não valem. Nada ali faz sentido. Mas antigas imagens de protestos contra o apartheid são convocadas por Kentridge para não nos deixar esquecer que tamanho despropósito realmente aconteceu. E não faz muito tempo.
O resultado de uma obra de arte nunca é a soma exata dos recursos empreendidos em sua criação. Seria injusto ler os filmes animados de Kentridge como supérfluos ou mal-realizados. Sua potência, contudo, soa diminuída se comparada a obras de igual natureza do artista. Referenciados anteriormente, os méritos da peça também não a redimem da ausência de ambição em problematizar o complexo material político que tem nas mãos. Nem por meio dos diálogos nem por meio daquilo que põe em cena.
Por maior que seja o engenho desse jogo entre realidade e ficção, o que dizem essas personagens e, especialmente, o lugar de onde dizem, não sofrem alterações durante o espetáculo. E não se está a mencionar alteração como uma cobrança pelo motor usual das narrativas, com conflitos ou curvas dramáticas.
Entendidos os mecanismos de desumanização e o apego à artificialidade como forma de esfumaçar o que é verdade histórica, o espectador pode usufruir de uma obra engenhosa, inteligente no uso que faz do cômico, sagaz em suas pontuações sobre a mecânica do mal. Talvez, porém, um pouco acanhada no olhar que lança a um episódio tão cheio de nuances e contradições.
(*) O Coletivo de Críticos é um ajuntamento temporário de críticos, com presença na internet e atuação em rede. Inclui integrantes dos sites-blogs-revistas eletrônicas Antro Positivo (SP), Horizonte da Cena (MG), Questão de Crítica (RJ), Satisfeita, Yolanda? (PE) e Teatrojornal (SP).
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