Metacrítica – Sobre o conceito de rosto no filho de Deus
Princípios dialéticos de uma imagem e sua irradiação performativa na cena
Valmir Santos, do Teatrojornal, em diálogo com o Coletivo de Críticos (*)
O fenômeno teatral é disposto com pinceladas realistas e reinventado sob elementos performativos entre as camadas de leitura com as quais o espectador é estimulado a trabalhar em Sobre o conceito de rosto no filho de Deus. A obra da companhia italiana Socìetas Raffaello Sanzio, concebida e dirigida por Romeo Castellucci, aporta significantes fortíssimos organizados de modo a pressupor relações/associações/tensões possíveis. Esta travessia é feita de múltiplas respostas e jamais conclusiva. Não esgota a percepção e escapa ao cerco do discurso que o título enseja.
Com uma cena aparentemente despojada, em que as coisas são dadas à luz e à superfície, Castellucci alcança um efeito vertiginoso no espaço mental do espectador. Um efeito de digressões incessantes, de movimentos contraditórios irreconciliáveis, de expansão e complexificação. Lá estão o divino e o humano, claro, mas o julgamento recai sobre ambos alternada ou simultaneamente, sem se deter em um apenas.
O rosto de Jesus pintado pelo renascentista Antonello da Messina nos julga e nos espia. Nós também o vemos e o julgamos, refletindo na cena não só a tradição cristã na qual estamos culturalmente inseridos, como também uma longa história de crítica a essa tradição. Assim, a piedade se desloca do pai que sofre de incontinência intestinal para o filho, que precisa cuidar dele e aparentar que não se incomoda. Depois, vai do filho para o pai novamente; até que resida sobre ambos, nas atuações de Gianni Piazzi (pai) e Sergio Scarlatella (filho).
A encenação parte dos códigos dramáticos para explodi-los na performatividade. A partir de uma cena aparentemente realista – em que as operações de identificação e construção de sentidos soam inevitáveis –, Castellucci provoca a falsa sensação de verdade, controle, entendimento na percepção. O espectador é levado a considerar inicialmente, sem contestações, a situação em cena como um conflito entre pai e filho (e somente isso), mas aos poucos é tomado pela incerteza. Quem representa quem? Quem julga quem? Quem submete quem? Quem olha quem? Quem é invenção de quem?
A transição ou modificação da estrutura linguística da obra ocorre mais na presença de uma sensação de narrativa dramática do que na realidade que enuncia. O fato de envolver a relação entre pai e filho induz a maiores identificações com a perspectiva do conflito. Mas a ação transcorrida em tempo real na primeira parte, quando o filho limpa repetidamente o pai prostrado em sua incontinência fecal, contrastando o ambiente asséptico da casa, essa ação aos poucos subverte a experiência do espectador e se aproxima das estruturas performativas, nas quais o corpo passa a significar a amplitude do gesto. É o gesto que verdadeiramente se preenche de perspectivas reais e não o desejar da ação transcorrida diante da imagem inteiriça do rosto de Cristo onisciente ao fundo.
E olhar é assombrar-se. É indagar. Por que Castellucci enquadrou apenas o rosto no quadro renascentista? Por que não as mãos, os ombros do quadro? O rosto é a identidade. O rosto é a humanização. O rosto foi dado por um humano – o pintor – ao divino. E, antes dele, por outros humanos que encontraram nessa representação um modo de dar imagem a Deus. Deus feito imagem e aproximado – assemelhado – do humano. A própria noção de humanidade está, portanto, posta em questão. Desestabilizada.
Essa imagem dialética remete ao conceito elaborado por Georges Didi-Huberman a partir de Walter Benjamim em livros como O que vemos, o que nos olha e Ouvrir Vénus. Em poucas palavras, podemos dizer que uma imagem pode ser pensada como dialética quando há nela algo que se dá a ver diante de nós ao mesmo tempo em que nos escapa, um movimento incessante de ausência e presença que abre a imagem e faz com que ela se desdobre em constelações de imagens.
A sensação de narrativa desponta no espetáculo mais na maneira como Castellucci estabelece um percurso ao sentir do espectador do que na trajetória interna da cena. A performatividade encontra-se exatamente na condição de ser o espectador o elemento possível narrativo. Está nele o sentir e não nos atores ou na dramaturgia. O “sentir” entendido como absorção da ambiência simbólica e sua ressignificação. Deste modo, Castellucci se utiliza do espectador como princípio dramaturgista. Esse deslocamento ao outro como estrutura de início torna o espetáculo performativo mais do que a performance dos intérpretes.
Uma evidência da artificialidade da cena acontece quando o espaço cenográfico é desmontado e a cama do pai, deslocada para a margem da cena, à direita. Num golpe de Castellucci (uma “pedra” a bloquear a cognição, como sugeriu o crítico e pesquisador Luiz Fernando Ramos), o galão com excremento (ou o líquido assim sugerido) aparece nas mãos do pai. Isso não apenas faz com que a encenação se revele em sua farsa fundadora, quebrando a ilusão dramática, mas também que o papel do pai passe a ser questionável pelo espectador: Ele propositalmente produz a merda? Ele quem? É digno de piedade? É o carrasco do filho? Os sentidos se estilhaçam.
Através da presença desse galão plástico, o público é conduzido a um constante movimento de reconfiguração de suas convicções (acerca de Deus e também do fenômeno teatral a que assiste), fazendo-o se indagar se aquela percepção inicial, ancorada na teatralidade naturalista, ainda basta no diálogo com a obra. Dá-se então um processo de questionamento incessante. A encenação, portanto, realiza um movimento que se inicia na certeza naturalista (baseada na ideia de verdade e de sentido único, assim como a crença em Deus) e termina na performatividade (com sua multiplicidade de sentidos e o engajamento do espectador como coautor).
Assim como na sequência das crianças atirando granadas contra a imagem de Jesus. Castellucci não retira de cena o velho pai. Este é deixado na periferia da visão do espectador. Ele está ali compondo a cena, em fricção, para ser considerado. Do mesmo modo pode-se considerar a escolha por crianças como agentes da iconoclastia dentro da representação não somente pela imaturidade denotada, mas (fora da representação) como a escolha de atores-mirins que não têm compreensão do ato que desempenham, advindo daí outros sentidos.
O velho não escapa à força de sua existência. A criança também não. O adulto, sim, e é nele que se preserva o que há de mais teatral, a tal da verossimilhança. A criança e o velho diluem esse desejo pela aproximação com a realidade em própria realidade. São crianças. São crianças com granadas nas mãos. São crianças com granadas nas mãos jogando-as no rosto do filho de Deus. E nessa sobreposição de imagens, dá-se o espanto. Somos assaltados pelos sentidos. Retiram de nós qualquer tentativa de continuidade e não nos devolvem pistas, não há caminho, mas suspensão.
No campo moral, aquele conjuminado ao espírito do ser humano, Sobre o conceito de rosto no filho de Deus desencadeia ainda uma complexa rede de culpa, responsabilidade, julgamento, piedade, compreensão e incompreensão, etc., que as partes da cena estabelecem entre si em uma constante instabilidade. Impossível fechar os sentidos ou encontrar um problema estável que a encenação sustente. A indagação lançada por aquela imagem que nos olha e a qual olhamos se reformula sem parar, muda de sujeito e objeto, reconfigura seus predicados, complexifica as articulações entre o humano e o sagrado na cultura e a própria configuração de cultura. Reside aí a potência desse trabalho: a impossibilidade de síntese ou de uma leitura minimamente estabilizadora que traga conforto ao espectador.
(*) O Coletivo de Críticos é um ajuntamento temporário de críticos, com presença na internet e atuação em rede. Inclui integrantes dos sites-blogs-revistas eletrônicas Antro Positivo (SP), Horizonte da Cena (MG), Questão de Crítica (RJ), Satisfeita, Yolanda? (PE) e Teatrojornal (SP).
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