Metacrítica – Escola
A linguagem desilude o discurso
Valmir Santos, do Teatrojornal, em diálogo com o Coletivo de Críticos (*)
As peças didáticas de Brecht, ou peças de aprendizagem, ganharam corpo na obra do dramaturgo, entre outras razões, pela impossibilidade de instaurar princípios épicos nas grandes salas de espetáculos. No final dos anos 20 do século passado, a proximidade com o espectador passou a ser imprescindível para estimular a consciência de coletividade no indivíduo. Sob a régua do marxismo, ação e estranhamento engendravam os objetivos políticos junto a pequenos grupos de comunidade, permitindo aos integrantes aferir convicções ideológicas com vistas a praticá-las com incisão.
O preâmbulo vem a propósito do exercício de aproximação do espetáculo chileno Escola (Escuela, 2013), que teve primeira exibição no Brasil dentro da MITsp. A partir de uma situação viva na memória de nações submetidas a ditaduras – o treinamento de adeptos da guerrilha para derrubar regime autoritário –, o diretor e autor Guillermo Calderón como que atualiza as técnicas brechtianas à luz de procedimentos criativos elaborados quase um século depois sob os mesmos desígnios do pensamento crítico rente às realidades sociais e políticas. A sofisticação de linguagem para acessá-las é que são elas.
Estamos na década de 1980, sugere a trama, sob as ordens do general Pinochet. Personagens com os rostos ocultos por capuzes aprendem noções primárias de capitalismo, tiro e conspiração. O ensino ao qual o público é igualmente exposto reflete as limitações comuns à aprendizagem escolar: a veiculação de um discurso quase catequizante e do qual o aluno-espectador há de desconfiar por si mesmo. O aparelho subversivo surge como esse lugar de uma verdade que instrui, mas de cuja solidez se deve duvidar. Assim como da natureza dos discursos.
O caráter expositivo é a deixa para que a verve estética de Calderón aflore. As instruções para o manuseio de arma ou de um artefato explosivo são rudimentares, em que pesem os argumentos fundamentados sobre a injustiça do regime de exceção a ser combatido.
A presunção de ensinar aprendendo, aprender ensinando é apropriada cênica e dramaturgicamente. Retórica e alienação entram em choque sob o mesmo manto utópico. Há ingenuidades e contradições. Embora se ouça somente a perspectiva de um grupo de guerrilheiros em formação, a abordagem passa longe do dogmatismo. O teor reflexivo agora se encontra nas zonas quebradiças do discurso sustentado precariamente. Mesmo a legitimação da violência ganha sombras absurdas.
O trabalho de Calderón demanda um espectador não ingênuo diante das concepções brechtianas que adota e as recria livremente. Os desencaixes entre cenas rompem a fluidez da fruição, incitando a leitura crítica a partir de sutilezas e subtextos.
A encenação realista, o espaço diminuto e a cenografia econômica atestam ainda certa ética da representação praticada por Calderón, um artista esquivo à espetacularização. Suas obras anteriores apresentadas no circuito brasileiro de festivais ratificam as coerências formais e temáticas.
Em Neva (2006), uma revolução ocupa as ruas de Moscou, em 1905, enquanto três atores, entre eles Olga Knipper, viúva de Tchekhov, ensaiam e se questionam se vale a pena levar sua arte adiante enquanto o mundo está em ebulição lá fora. Em Clase (2007), um professor tenta ensinar o conceito de tragédia à única aluna presente e ela está ansiosa para dissertar sobre Buda enquanto o restante da sala participa de uma manifestação pública por melhorias no sistema educacional.
Em Diciembre (2008), duas irmãs recebem o irmão que volta de uma guerra, no norte do país, em que o Chile enfrenta tropas do Peru e da Bolívia. É noite de réveillon, mas inescapável discutir política, compromisso e nacionalismo já que o rapaz retornará ao front no dia seguinte. Em paralelo, chegam notícias de que os índios mapuche, ao sul, triunfaram no intento separatista e vão criar um estado próprio.
No espetáculo Villa+Discurso (2011), os paradoxos revelam a concorrência de forças sob a superfície de uma convicção. Tais forças se mostravam mais evidentes na dramaturgia, separadas em opiniões distintas sobre o melhor modo de representar a memória da violência cometida durante a ditadura chilena a partir de um problema concreto: a construção de um museu. O conflito de pontos de vista estruturava as ações e se dava a ver na superfície dos discursos; e o encaminhamento dado a eles depunha sobre o caráter ilusório de um consenso ou uma verdadeira solução. Dissonâncias presentes ainda na outra parte da obra dedicada ao simulacro da despedida da presidente Michelle Bachelet ao final da primeira gestão. O texto de Calderón promove uma ficção da mea-culpa de quem frustrou parte do eleitorado com a marca de um governo neoliberal comandado pela filha de um militar executado durante a ditadura.
Por fim, chegamos a Escola, trabalho que sintetiza a trajetória e a capacidade desse criador na economicidade do que tem a dizer e como o faz. A tônica política que salta aos olhos jamais esmorece a teatralidade. Calderón é persuasivo ao conjugar a cultura autóctone, a expressão popular, as ideias da militância de esquerda e o combate às sequelas do estágio atual do capitalismo justamente em tempos de crise de representatividade. A mística dos hinos de mobilização, o cancioneiro de evocação ao povo mapuche e os capuzes dos jovens movidos por idealismo constituem alguns dos aspectos mediadores da encenação.
Apesar da frontalidade – disposição de palco dominante nesta primeira edição da MITsp –, o espectador trabalha com a visão da semiarena como espaço cênico. As aulas são sempre conformadas desse modo, às vezes com os personagens de costas para o público. Dissertar artisticamente sobre processos históricos requer solidez. Os atores não perdem uma nesse jogo de falar e demonstrar em tempo e espaço exíguos.
(*) O Coletivo de Críticos é um ajuntamento temporário de críticos, com presença na internet e atuação em rede. Inclui integrantes dos sites-blogs-revistas eletrônicas Antro Positivo (SP), Horizonte da Cena (MG), Questão de Crítica (RJ), Satisfeita, Yolanda? (PE) e Teatrojornal (SP).
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