MITsp

Metacrítica – Anti-Prometeu

Por uma chama intempestiva
Daniele Avila Small, da Questão de Crítica, em diálogo com Coletivo de Críticos

Depois de assistir à apresentação de Anti-Prometeu, do Studio Oyunculari, da Turquia, na 1ª edição da MITsp no dia 12 de março, eu e Ana Carolina Marinho escrevemos textos críticos que, já no dia seguinte, foram impressos e distribuídos nos teatros que abrigavam as peças da mostra, bem como publicados no blog Prática da Crítica, dentro do site da MITsp, e na página Coletivo de Críticos no Facebook, onde nós, críticos reunidos, trocamos impressões sobre as peças e sobre as nossas críticas.

Esses textos integram uma trama maior de produção de pensamento, somando-se ao artigo de Clóvis Massa publicado no catálogo do evento, à sua palestra apresentada no Itaú Cultural na manhã da primeira apresentação do espetáculo na programação, e ao debate com Lisette Lagnado realizado depois da peça no dia 13 de março. Por conta da intensidade da agenda, não consegui estar na palestra nem no debate, o que faz com que esta revisão, este exercício de metacrítica, não consiga levar em consideração opiniões importantes como a dos pensadores acima mencionados.

Por outro lado, a convivência diária com diversos professores e pesquisadores das artes cênicas ao longo dos nove dias em São Paulo – com direito a discussões teóricas no jantar, longas conversas no foyer de um teatro, dentro da van ou no café da manhã do hotel –, bem como a troca de impressões entre o coletivo de críticos reunido para fazer a cobertura crítica da mostra, tudo isso proporcionou um alargamento do meu ponto de vista sobre o espetáculo. Pude revisitá-lo a cada conversa, a cada comentário e ao reler os textos da Ana Carolina e do Clóvis.

Assim, procuro rever algumas questões pontuais que me chamaram a atenção neste contexto de troca de experiências: a relação com o tema, a presença fugidia do texto, o aspecto formal da encenação, a relação com o espectador e a representatividade da peça no seu contexto.

PROMETEU E O TRÁGICO NO TEATRO CONTEMPORÂNEO

A presença do nome Prometeu no título nos remete de imediato ao mito e ao universo da tragédia grega. Acredito que a economia formal do espetáculo possa estimular o espectador a refletir sobre a sua proposição temática, mais que sobre os seus procedimentos cênicos – algo que no meu texto aparece apenas nas últimas linhas, mas que ganha protagonismo no texto de Ana Carolina, que se dedica a expor longamente seu pensamento sobre o mito. Sua interpretação da dinâmica da cena coloca Prometeu no lugar do comando, quando diz que “os homens (atores) estão a serviço de Prometeu (luz, som, legenda), é ele quem dita as regras e quem começa e termina qualquer ação”. Questiono se é possível comparar o fogo de Prometeu com um comando automatizante, tendo em vista sua potência simbólica de liberdade, criação, desejo e espiritualidade. A luz fria – quase gélida – que emite os comandos de movimentação não é como a luz do fogo. Acredito que o Anti-Prometeu do título não esteja no dispositivo, mas na figura humana, que não é como Prometeu porque não interfere no mundo: sua chama é suficiente apenas para mantê-lo vivo, não tem força de irrupção. As figuras humanas que aparecem no palco transportando cadeiras empilhadas amarradas ao tronco também remetem a outra figura mitológica, Atlas, irmão de Prometeu, que carrega o mundo sobre os ombros. O Prometeu da peça encenada por Şahika Tekand é mais homem do que Deus.

Podemos acrescentar aqui algo que ficou de fora das duas críticas, uma reflexão a partir do primeiro título do espetáculo – que chegou para nós como subtítulo: Como esquecer em 10 passos. A dinâmica de movimentação dos atores faz com que eles se desloquem por “casas”, etapas de um jogo de tabuleiro. A cada passo, mais um gesto de obediência, mais um dever cumprido e mais o homem se afasta do seu possível objetivo inicial. Ele vai se esquecendo de si. Os 10 passos fazem referência a um discurso de autoajuda amplamente difundido, que ensina as pessoas a resolverem seus problemas em 10 passos, como se tudo na vida fosse muito simples, desde que se siga alguns comandos pré-estabelecidos. O título da peça sugere que os passos dados pelos atores a cada jogada sejam passos que levam ao esquecimento de si.

Ter um mito grego como tema também chama atenção para o trágico na contemporaneidade, assunto sobre o qual o texto de Clóvis discorre brevemente, apontando para os estudos de Raymond Williams. Assim como o conceito de drama está ampliado para além das normas abstratas do drama absoluto como apresentado por Peter Szondi, o conceito de tragédia também não se restringe mais a uma determinada situação de um determinado personagem em uma narrativa que segue pressupostos dados. O trágico pode estar na própria linguagem, em uma relação de verticalidade intrínseca à dramaturgia cênica e às atuações, que a encenação em questão sugere na condição dos “personagens”, mas que se dissolve na banalidade discursiva.

A crítica de Ana Carolina chama atenção para o texto como elemento de tensão para o jogo, observação com a qual concordo apenas em parte, tendo em vista o conteúdo do que é dito. O texto parece reiterativo, quase didático. Para refletirmos sobre isso, já que a leitura das legendas foi difícil para muitos, podemos sugerir a leitura de trechos do texto (em inglês) no site do grupo. O teor da fala nos monólogos, que discorre sobre o peso dos fardos de cada um, é um tanto banal. Acredito que seja neste ponto que o trágico afrouxa, pois as tensões se expressam de maneira horizontal, plana, quase chapada. No texto falado, o problema daquelas figuras humanas com a condição trágica da irreversibilidade da sua condição se expressa de um modo que se aproxima do dramático.

PAISAGEM SONORA / ESFORÇO DE LEITURA

A presença da legenda acaba por fazer um jogo de espelhamento, pois passa a ser uma tarefa, uma demanda de esforço físico para o espectador, que pode entrar no jogo de ter que responder a estímulos externos. Esse ponto apareceu nas duas críticas, provavelmente porque foi uma questão muito comentada pelo público ao fim da peça. As pessoas se perguntavam sobre a relação com a legenda. Como a plateia do teatro não era completamente frontal, muitos espectadores, como os que ficaram nas laterais das primeiras filas, assistiram à peça em um ângulo que praticamente inviabilizava a leitura da legenda. Além disso, a legenda foi projetada em uma tela bem acima da cena, enquanto o maior apelo visual do espetáculo está no jogo de luz que se dá no chão do cenário, de modo que a leitura da legenda demandava uma movimentação do eixo do olhar.

No entanto, tentando responder a uma questão colocada pela Pollyana Diniz, me parece que abrir mão da legenda também pode ser parte do jogo. A negação do estímulo pode ser uma jogada do espectador, que tem a opção de rever uma das regras propostas naquela partida. Nesse caso, a fala dos atores passa a ser mais uma questão da sonoridade do espetáculo, com a qual se pode estabelecer uma relação mais abstrata, em vez de se apegar à expectativa de que a fala, no teatro, cumpra uma função prioritariamente narrativa ou ilustrativa. O discurso do espetáculo pode estar no jogo que se apresenta, na relação entre seus elementos formais, mais que no entendimento do texto falado.

Um dado a mais para a relação do público com a fala pode ter sido a relativa familiaridade com a sonoridade da língua na maior parte dos outros espetáculos da mostra. Diante de espetáculos do Uruguai, da Itália, da Espanha e da Argentina, a fala dos turcos do Studio Oyunculari, bem como a dos lituanos do Hamlet de Oskaras Koršunovas, naturalmente soaram mais duras. A propósito, a presença destes dois espetáculos entre os de países já mencionados, bem como as outras obras da França, África do Sul e Brasil, proporcionaram uma amplitude valiosa à curadoria da MITsp.

ENCENAÇÃO DO PERFORMÁTICO

A legenda também denuncia o caráter espetacular, de repetição da encenação, em contraste com uma possível expectativa de performatividade, talvez suscitada pela apresentação da sinopse, que diz: “Anti-Prometeu é construído como um jogo performativo, cujas regras desafiam atores e público.” Na verdade, o único desafio para os atores é de resistência, mas é visível que eles estão preparados, que têm um treinamento para cumprir a movimentação ensaiada. O performativo aconteceria de fato se o jogo acontecesse ao vivo, se os comandos não estivessem decorados, se a fala não fosse previamente fragmentada e se a movimentação não fosse coreografada. Este ponto poderia ser discutido mais aprofundadamente, tendo em vista a confusão que se faz quando se usa o termo performance (e suas derivações) no teatro. Em inglês, performance pode significar coisas muito diferentes que não necessariamente têm a ver com a performance art. A palavra performance pode ser traduzida por espetáculo ou por desempenho, por exemplo. E, em Anti-Prometeu, há mais espetáculo e desempenho do que performance no sentido da performance art. Assim, considero sempre importante nos perguntarmos sobre o que estamos falando quando falamos de performance no teatro, para além do fetiche com algo que se anuncia como diferente mas que, muitas vezes, opera nas mesmas frequências.

Uma outra questão relacionada à dinâmica da encenação é a abordagem literal da premissa do jogo de estímulos e respostas. Tive a impressão de que a racionalidade necessária à movimentação esgota cedo o interesse pela ação. Em poucos minutos, é possível entender as regras e logo se vê que os jogadores não vão alterá-las mesmo que cheguem à exaustão. A possibilidade de uma quebra destas regras só se dá depois que se completa um ciclo de movimentação em uma duração regular de um espetáculo.

ATENÇÃO FÍSICA

Talvez seja possível especular a respeito daquela ideia de performatividade se nos concentrarmos na fisicalidade dos desempenhos. Como apontou Luciana Romagnolli em uma conversa depois da peça e nos comentários da página do Coletivo de Críticos, ela percebeu, na sua própria relação com a peça, uma afetação cinética, algo que pode colocar o corpo do espectador no ritmo da movimentação da cena.

Essa observação me interessa porque fala de uma conexão entre atores e espectadores a partir de estados físicos, mais que de articulações intelectuais ou de uma atenção à narrativa. Em alguns debates na programação do Olhares Críticos, especialmente na palestra de André Carreira sobre a peça Bem-vindo a casa, do diretor uruguaio Roberto Suárez, veio à tona a conversa sobre dramaturgias e registros de atuação trabalhados a partir de estados. Aqui fazemos uma aproximação que é quase por oposição, pois os casos discutidos naquela palestra eram de dramaturgias criadas a partir de estados com os atores, em um sentido bem diferente e que me parece muito mais complexo do que o caso de Anti-Prometeu. Nesta peça, a movimentação a ser executada vai causando, gradativamente, um estado de prontidão e exaustão nos atores que é constitutivo da cena. A afetação provocada por este estado pode provocar uma sintonia entre espectador e ator, uma sensação de presença no corpo do espectador.

A questão que pode ser levantada com isso é a natureza da relação do espetáculo com o público, uma relação que pode ser física – e talvez para isso tenha que ser, de algum modo, incômoda. Mas acredito que para esse contágio acontecer, é preciso uma certa proximidade com a cena (nós estávamos relativamente próximas ao palco). Apesar de a peça demandar um palco grande, talvez o espetáculo tenha maior chance de exercer esse efeito sobre o espectador se o público estiver mais perto. Pergunto se essa afetação cinética da qual Luciana fala, e que em algum momento também percebi, poderia se desencadear à distância.

NO MUNDO DOS HOMENS

Os minutos finais da peça trazem o que me parece mais atraente nesse trabalho – e aqui, aqueles que têm a expectativa de assistir Anti-Prometeu em algum outro festival e preferem não conhecer o desenrolar do espetáculo devem interromper a leitura. Não mencionei essa questão na crítica escrita na manhã do dia seguinte para não antecipar a experiência daqueles que ainda assistiriam à peça, mas também porque não haveria tempo nem espaço para colocar a questão claramente. Depois que o jogo aparentemente chegou ao fim e aqueles que emitem os comandos, bem como aqueles que os obedecem já deixaram a cena, uma mulher atravessa o fundo do palco algumas vezes, como se procurasse alguma coisa. Em uma de suas passagens, uma casa do tabuleiro se acende, convidando-a a ocupá-la. Ela o faz e a iluminação do tabuleiro a conduz para o proscênio. Ela nos olha, olha para o fundo da plateia e pergunta se há saída. Ela volta para o fundo do palco, mas sem obedecer ao caminho proposto pelo dispositivo cênico. Este único ato de insubordinação adquire o peso de um gesto inaugural, a sugestão de uma possibilidade de mudança, de reversão daquela situação de repetição aprisionadora. Não é aleatória a escolha de uma mulher para fazer este epílogo.

Dos onze trabalhos que integraram a programação da MITsp, só dois são capitaneados por mulheres – este e Eu não sou bonita, de Angélica Liddell. Se olharmos para a programação de festivais e mostras de teatro no mundo todo, percebemos que ainda vivemos no mundo dos homens. Isso me faz pensar como é ser mulher na Turquia e como é ser diretora de teatro na Turquia. Na verdade, pouco sei da cultura deste país, mas imagino que as diferenças de gênero tenham um nível de complexidade que não consigo alcançar. Assim, penso que o trabalho apresentado por Şahika Tekand (afora as questões estéticas propostas por Anti-Prometeu ) tenha uma considerável parcela de singularidade no seu contexto cultural, além do seu lugar de relevância no cenário internacional do teatro contemporâneo.

(*) O Coletivo de Críticos é um ajuntamento temporário de críticos, com presença na internet e atuação em rede. Inclui integrantes dos sites-blogs-revistas eletrônicas Antro Positivo (SP), Horizonte da Cena (MG), Questão de Crítica (RJ), Satisfeita, Yolanda? (PE) e Teatrojornal (SP).

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