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Críticas – Sobre o conceito de rosto no filho de Deus

Sobre a abertura do olhar nas imagens de arte
Por Daniele Avila Small – Questão de Crítica 

O espetáculo que abriu a programação da MIT, Sobre o conceito de rosto no filho de Deus, de Romeo Castellucci, oferece uma ampla gama de chaves de leitura. Elaborar um texto crítico propositivo sobre esta obra – em poucas horas e em um espaço reduzido – demanda uma escolha radical. Diante da complexa trama de possibilidades que se abre diante do espectador, a proposta deste breve exercício de reflexão é puxar um único fio e apontar um caminho possível de reflexão sobre a peça, sem a intenção de esgotá-lo. Trato feito, puxamos o fio: pensar a presença do rosto de Cristo no fundo do palco como a construção de uma imagem dialética e como o espetáculo opera, com isso, uma proposição ética que nos fisga para dentro da obra. Por imagem dialética, entendo o conceito elaborado por Georges Didi-Huberman a partir de Walter Benjamim em livros como O que vemos, o que nos olha e Ouvrir Vénus. O que nos convida a trazer à tona um conceito para esta tentativa de diálogo com a obra é o próprio título, uma proposição teórica estranhamente elaborada. Pelo título, a peça nos diz que o que está em jogo não é uma trama nem um tema, mas um conceito. Assim, nos propomos a jogar com cartas do mesmo baralho.

Em poucas palavras, podemos dizer que uma imagem pode ser pensada como dialética quando há nela algo que se dá a ver diante de nós ao mesmo tempo que nos escapa, um movi-mento incessante de ausência e presença que abre a imagem e faz com que ela se desdobre em constelações de imagens. O efeito da imagem dialética é a sensação de que ela nos olha – uma ideia presente em diversas declarações de Castellucci. Uma imagem dialética é uma imagem aurática, sendo o conceito de aura um aspecto importante da reflexão sobre as artes desde o texto de Benjamim A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. O rosto de Cristo, como pintado por Antonello Della Messina, projetado e ampliado no fundo do palco, articulado em simultaneidade com a cena do filho que limpa diligentemente as fezes do pai que sofre de incontinência, me parece ser uma materialização precisa da imagem dialética. Afinal, a imagem de Cristo é pura aura: é sempre presença e ausência ao mesmo tempo, um homem que também é deus, um corpo ressuscitado, um corpo que se faz hóstia, um corpo-conceito.

A sua representação visual é, para os cristãos de fé, como o próprio Cristo – daí a rejeição visceral que a peça provoca nos mais fervorosos. O que o espetáculo opera com a representação desse rosto é algo que dispara o vislumbre da aura: o “fato” de que aquela imagem nos olha, a eficácia do seu olhar. O imenso rosto de Cristo no fundo da cena nos oferece uma representação literal desse efeito estético. Se somos céticos na lida com a arte, vemos apenas a projeção de uma pintura como artefato de cenografia, e assim nós apenas olhamos. Mas, se nosso olhar está aberto para as imagens de arte na sua intensa complexidade, vemos a imagem do filho de deus – e essa imagem nos olha.

A presença do olhar do Cristo é a presença assombrada de um juízo constante. O que eu tenho a dizer sobre o conceito de rosto no filho de deus é que ele nos olha. Ao dar a ver a aura na imagem desse rosto, Castellucci alimenta a força para questioná-lo e, com um golpe, infiltra a negação no cerne da afirmação do seu poder sobre nós. O “não” que aparece, como um fantasma, na frase “o senhor (não) é o meu pastor” surge como contraponto desconcertante àqueles piedosos olhos de Cristo, com uma força plástica singular, e nos olha como se nos perguntasse, expondo uma ferida histórica, de que maneira aquela frase faz sentido para nós.

 

A fisionomia do olhar
Por Valmir Santos – Teatrojornal

A face onisciente de Cristo no pé-direito do palco, do queixo aos fios de cabelo, justapõe as escalas do sagrado, do humano e do espaço cênico em Sobre o conceito de rosto no filho de Deus. A imagem de forte carga simbólica e de construção histórica evidente redundaria o título da obra não fosse ela mesma convertida em dispositivo seminal da companhia Socìetas Raffaello Sanzio. Seu diretor, Romeo Castellucci, enquadra apenas a cabeça em vez do gesto e parte do torso da pintura do renascentista Antonello da Messina que o inspira. O enigma dessa fisionomia estabelece um campo autônomo ao observador que para ela desviará em muitas passagens do espetáculo em busca de significações ou ressignificações talvez menos exasperantes do que aquela que enreda pai e filho. Em vão.

No plano realista, eles acabaram de acordar. O velho interpretado por Gianni Piazzi senta para assistir à televisão enquanto o filho, por Sergio Scarlatella, já com o figurino do executivo prestes a sair para o trabalho, lhe prepara o café da manhã. Esse fragmento de cotidiano sai dos eixos com a prostração do pai, sem controle sobre as necessidades fisiológicas, e a consequente impotência do filho diante do estado primitivo do ser e da iminência da finitude. Alegoria dos embates divino e humano.

Ao retratar a compaixão em circunstâncias limítrofes (a limpeza das fezes e a colocação da fralda geriátrica ocorrem na cadência factual), Castellucci cuida em contrapor a presunção teatral. Ela está dada desde os primeiros longos minutos em que rastreamos a casa de móveis assépticos, de sofá, mesa, cadeiras, carpete e tudo mais tomado pelo branco, exceto o aparelho de TV de costas para o público e uma planta num vaso. Eis o set. Corpo arqueado, andar titubeante, o pai surge carregado por dois contrarregras vestidos de preto, feito manipuladores de bonecos. A partitura do filho que congela o gesto da mão estendida nas costas do pai na hora de limpá-lo ou um galão com o composto que sugere os excrementos em cena são indícios do artifício da arte ao vivo a sustentar o fio das presenças e dos mal-estares.

No segundo movimento do espetáculo a relação pai e filho, até então permeada pela parábola do sagrado, converte-se em instalação. A casa é desmontada aos olhos do espectador, menos a cama em que o pai está sentado, abatido, cabisbaixo, com o rosto entre as mãos. A narrativa ganha o contorno moral, ou seja, pertence ao domínio do espírito do homem. Crianças atiram objetos contra o Cristo de traços humanizados lá na Renascença (Kurt Cobain seria um bom modelo para encarná-lo), justamente quando a arte ganha perspectiva, dá margem para interpretações. A ação das criaturas imberbes despejando objetos de suas mochilas e atirando-os na direção da criatura icônica pode ser lida como um levante, à maneira de Jó, ou como uma figura de retórica contra as gradações do fundamentalismo na ordem global. É o futuro confrontando o passado arcaico aqui e agora.

A iconoclastia irrompe de vez no movimento final da apresentação, quando a imagem se faz verbo. Entre as razões de conduzir ou se deixar conduzido paira “o ser ou não ser” shakespeariano, reafirmando que a teatralidade é o que suporta essa aventura do olhar que desde a cultura grega atinava com o pensar e hoje padece do excesso de imagens a ver. Ver é passagem. O olhar adere e transforma. É sensorial.

Assim como os demais espetáculos que trouxe ao Brasil, a longeva Socìetas Raffaello Sanzio segue impactando nas composições plásticas e sonoras dos sentidos vitais.

Durante a mostra, serão postadas aqui críticas diárias dos espetáculos da programação, escritas por integrantes do Coletivo de Críticos. Leia mais sobre as ações do Coletivo de Críticos na seção Olhares Críticos deste site.

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