Por Alvaro Machado

O professor Ferdinando Martins, do Centro de Artes Cênicas da Escola de Artes e Comunicações da USP, diretor do Teatro da USP, apresentou, na sala do TUSP da rua Maria Antônia, a mesa de debates Teatro Palestino: Relações entre Política e Arte, entre as atividades do eixo Olhares Críticos da 4ª MITsp. Participaram o diretor palestino Ihab Zahdeh, ministrante de workshop iniciado em 2 de março no TUSP e cujos resultados estão sendo apresentados no decorrer da mostra; a atriz chilena Andrea Giadach, convidada da 4ª MITsp ; e a crítica teatral Maria Fernanda Vomero, curadora do eixo pedagógico da atual MITsp e ativista pela causa palestina.

Sobre a presença de Andrea, também no elenco da peça de tema político Mateluna, de Guillermo Calderón, Martins lembrou que o Chile abriga atualmente a maior comunidade palestina fora da Palestina (cerca de 350 mil pessoas), o que ocasionou até mesmo a criação de dois times de futebol profissional, sendo o Club Deportivo Palestino o segundo maior daquele país.

Maria Fernanda Vomero abriu a mesa lembrando não ter ascendência palestina, mas provavelmente hebréia (“cristãos novos” na Itália), para situar, em seguida, sua familiaridade com o tema em pauta. “Fiz três viagens à Palestina para pesquisar o teatro local. Em 2007, estive tanto em Israel como na Palestina, e a força de ocupação israelense dos territórios palestinos me chamou imediatamente a atenção. Em 2008 fui apenas à Cisjordânia, em territórios palestinos ocupados, e, no final de minha estada, visitei o campo de refugiados de Jenin e a companhia The Freedom Theatre, que esteve em São Paulo em 2013, a convite do TUSP. Esse grupo é tanto uma cia. de teatro como um centro cultural, com uma experiência artística que me impressionou muito. Percebi que eles guardam identidade com um teatro de resistência que conhecemos muito bem aqui na periferia de São Paulo. Quanto a ambos, existe por parte do público geral uma ideia formada que envolve caridade e comiseração, uma atitude de paternalismo para com esse teatro de favelas e comunidades. É comum ouvir:  ‘Vejam que ingênuos, eles refletem sobre os aparatos cênicos e não sobre a atual crise de representação etc.’. Sei disso porque trabalho com o grupo de teatro da Favela de Heliópolis (zona sul de São Paulo) em condições semelhantes às que observei no Freedom Theatre. Mas, assim como em Heliópolis, existe na Palestina uma experiência artística cênica muito forte, ainda que com poucos recursos materiais”.

A reportar as dificuldades do fazer artístico na cena palestina, Vomero teceu breve histórico das perdas contínuas dos habitantes da região, por tomadas e invasões israelenses desde 1948. Observou estar a fragmentação territorial atual no mesmo nível dos bantustões do século passado no sul da África [territórios delimitados para o confinamento de etnias], devido ao isolamento sofrido por muitas cidades, notando-se atualmente multiplicação de campos de refugiados, na própria Palestina, na Jordânia, no Líbano e em outros países, com as pessoas a aguardar em condições precárias um possível retorno às suas casas ou territórios. Entretanto, na visão da ativista, o teatro local tem se fortalecido, a exemplo de ações pedagógicas recentes do The Freedom Theatre. Em sua última visita, no ano passado, Vomero conheceu experiências teatrais diversas nas cidades de Hamala, Belém e Hebron, entre outras.

“Em Hebron, no sul da Palestina, um dos locais mais emblemáticos da ocupação israelense, me impressionou ver que no centro antigo existem hoje quatro assentamentos judaicos, o que pressupõe presença diária e contínua do exército israelense no coração da cidade. É desse lugar que vem Ihab Zahdeh, foi lá que nos conhecemos”. “Fiquei bastante impactada com o seu grupo, o Yes Theatre, e quando surgiu oportunidade propus sua vinda a Antônio Araújo, curador da MIT, em especial para a atual edição de resistência da mostra”, lembrou.

“A experiência teatral na Palestina também é de resistência porque os habitantes precisam ocupar-se continuamente de ações e estratégias para sobreviver à ocupação israelense. Isso se dá nas mais mínimas coisas, por exemplo nos produtos que podem ser encontrados nos supermercados, pois Israel controla a autonomia palestina de maneira econômica, política e social. Existem a dança, a música e o cinema na Palestina, mas a experiência teatral é fundamental, porque para além da disputa de terras, a disputa narrativa é muito grande. Nesse sentido, no mundo inteiro as pessoas costumam falar em conflito na Palestina, porém não existe a simetria de forças pressuposta por essa palavra, e o que se tem, na verdade, é um povo invadido por outro de maneira brutal”, disse Vomero.

“O teatro coloca pessoas em cena numa situação muito física, com recortes que contemplam diretamente os seus corpos, e, assim, por meio da exposição das marcas da humilhação advindas da derrubada de suas casas, de seu cerceamento etc., temos o artista em cena com seu corpo brutalizado, humilhado. Além disso, o teatro faz com que as pessoas se reúnam em ritual, o que em geral é interpretado pelo ocupante como ato terrorista. Com o teatro, quebra-se o silêncio imposto cotidianamente ao povo palestino”, explicou.

A atriz Andrea Giadach, que mantém em Santiago do Chile a companhia Território Particular, tomou a palavra para lembrar ser neta de palestinos e disse que sempre experimentou “grande sentimento de impotência” frente à questão da nacionalidade de seus avós. “Quando criança eu escutava sobre as injustiças cometidas contra esse povo nos anos 1980 e 1990, porém uma pessoa não podia sequer comentar tais fatos sem ser rotulada imediatamente de ‘antissemita’, e os meios de comunicação de massa chilenos falseavam a realidade, pois falavam em ‘conflito’, quando, na verdade, estavam ocorrendo invasões dos territórios palestinos”, recordou.

“Por outro lado, até hoje perdura, em geral, certa alienação, ou  insensibilização [desafectacíon] frente à questão palestina. Quando as pessoas começam a falar sobre isso, ninguém lhes presta atenção. Assim, precisamos encontrar mecanismos novos para gerar um vínculo real com o tema. Nessa tentativa, achei muito inteligente um romance chamado Cartucho, da autora mexicana Nelly Campobello, escrito em primeira pessoa para trazer à tona as recordações de uma criança sobre sua situação na Revolução Mexicana, falando-se unicamente de fatos que a autora experimentou quando pequena. Portanto, historiciza-se a revolução desde o ponto de vista de uma criança, sem prejulgamentos, sem chavões. Pode-se fazer política dessa maneira, com essa escritura? Evidentemente que sim. Então fizemos, em nossa companhia Território Particular, uma peça sobre a Palestina desde o ponto de vista da infância – Mi Mundo Patria, com atuação de Lorena Ramirez –, porém também nessa obra desde o ponto de vista de uma dor, quando o normal é falar de algo mais lúdico nesse estágio da vida. E uma vez que não podíamos aludir diretamente à questão palestina numa peça, resolvemos localizar um fator em comum com a condição desse povo, algo de local que nos proporcionasse um elo de ligação com a questão palestina. Encontramos, assim, a questão dos índios mapuche no Chile, que na ditadura militar de nosso país também conheceram a dor da perda de seu lugar de origem, porém abordamos tudo isso desde uma visão de infância”.

“Para a narrativa, tomamos os testemunhos de três pessoas que, por circunstâncias diversas, viveram a perda de seus lugares de origem e viram negadas as suas matrizes identitárias: um suíço, uma costa-riquenha e, por fim, um palestino que viveu a Nakba [“desastre”, como os palestinos nomeiam o êxodo palestino de 1948, após a Segunda Guerra), foi para o Chile e nunca mais pôde regressar. Essa peça pergunta, portanto, no que consiste a pátria de alguém. A pátria, para chilenos ou brasileiros é um conceito normal, e ninguém perde o direito à sua pátria, à sua nacionalidade, mas os palestinos são um povo que perdeu isso.

Em seguida, o diretor Yhab Zahdeh agradeceu o convite da MIT e a oportunidade de estar presente à quarta edição da mostra: “O teatro é o melhor lugar para a resistência. Ele elimina diferenças, pois todos chegam até aqui para ver algo com que têm uma ligação efetiva, todos estão de acordo quanto a um ponto de partida. Por isso escolhi o teatro como meio de resistência, porém, ao mesmo tempo, não precisamos se violentos no teatro, não precisamos representar situações violentas, mas podemos fazer isso de um modo artístico, de maneira a elevar as pessoas em todos os lugares. Em muitos momentos menciona-se histórias de horror, mas nós, palestinos que sofremos a ocupação de Israel,  apresentamos sobretudo lições sobre o amor, porque na realidade somos pessoas muito normais, somos cidadãos comuns, e não a ameaça que Israel pinta. Nos comemos, bebemos, rimos, e claro que não há anjos nem demônios absolutos, mas, ao contrário, somos uma sociedade normal, ainda que uma sociedade cindida, que experimentou graves cisões em diversas épocas. A primeira foi com a Nakba, quando a primeira geração saiu de suas casas, por medo. Achavam que voltariam a elas depois de algumas horas, mas sua imigração foi imposta e até hoje, em algumas casas ainda de pé, há uma chávena de chá ou de café sobre a mesa, sem ser inteiramente tomada. Passaram-se setenta anos e as pessoas não retornam, elas esperam, e neste ponto há uma diferença significativa com os atuais refugiados do mundo árabe, com o problema sírio por exemplo. Pois da Nakba palestina ninguém no mundo se ocupa, como se ocupam hoje da Síria. Essa seria, portanto, minha grande pergunta ao falar a vocês, uma vez que a primeira grande emigração sem condições no mundo árabe foi a dos palestinos. Não há qualquer termo de comparação com esse fato e, com 39 anos, eu sou um exemplo vivo, pois vi tanto a Primeira Intifada [rebelião palestina contra a ocupação] com a Segunda Intifada, e ainda espero uma solução. Os israelenses jogam com o tempo, para que todos esqueçam, enquanto os Estados Unidos e a Europa contribuem para isso, para que todos esqueçam a violência praticada. Quanto a nós, para não esquecermos usamos a arte, ele é forma de lembrança e resistência, e nesse sentido o teatro é muito importante. Com ele, transmite-se às gerações mais novas os dramas da invasão, sem necessidade de muito financiamento, com deslocamentos possíveis a muitos lugares”.

O diretor prosseguiu em sua memória: “Os israelenses afirmam mentirosamente que ocuparam uma terra que não tinha povo. Então mostramos por meio de ação teatral que essa terra já tinha um dono. Alegam, ainda, que somos um povo ‘sem raízes’. E de que maneira podemos provar nossas raízes culturais, aliás com contribuições civilizatórias antiquíssimas, se a política internacional é dominada por Israel, com acordos políticos e econômicos? As artes palestinas constituem a única linha de ação que Israel não consegue dominar, pois mesmo se estivermos trancados em prisões podemos escrever e nossa mensagem poderá ser transmitida, isso é algo impossível de o outro dominar”.

“Sobre a palavra conflito, concordo com as falas de minhas colegas de mesa. Não existe ‘conflito’ entre palestinos e israelenses porque nossa sociedade não luta com armas, não as possui, enquanto nos assentamentos israelenses até uma criança tem a sua arma. Somos, na verdade, uma sociedade ocupada, e posso dar a vocês um pequeno exemplo, o do cemitério de minha cidade. Se eu quiser ser enterrado nele, minha família terá de pedir permissão a Israel, pois nossos túmulos se encontram hoje em território ocupado. Outro exemplo, na mesma cidade de Hebron: os israelenses têm piscinas, enquanto nós não temos às vezes nem água para beber”, relatou. “O que é pátria, qual o seu significado?, essa é a pergunta mais difícil. Mas a pátria fica, sempre. Ainda que todos os palestinos morressem e restasse apenas um, ainda assim a pátria existiria, pois a ideia permaneceria em seu corpo. De outro lado, o desenvolvimento palestino em tecnologia etc. estancou completamente, e somente as artes permitem que nos aproximemos de nosso objetivo, não a política. Por isso o teatro é tão importante. Estou hoje no Brasil falando da Palestina como um ato de resistência e isso já é suficiente para mim. A resistência é uma ação diária, uma parte essencial de nosso povo, e nós escolhemos a arte como meio de resistência, porque de violência e sangue o Oriente Médio já está cheio”, concluiu.