Texto sobre o espetáculo Black Off, escrito por Miguel Arcanjo Prado

No Brasil que insiste em produzir espetáculos que utilizam a técnica racista do “blackface”, quando uma pessoa branca pinta o rosto e o corpo de preto para criar uma imagem estereotipada do negro, ou mesmo transformar o negro e a negra em fantasias carnavalescas, é no mínimo curioso e provocante ver a sulafricana Ntando Cele surgir no palco em uma versão “whiteface”, com rosto pintado de tinta branca e peruca loira. Sua proposta é criar o reverso do racismo em Black Off.

De forma potente e utilizando o recurso do humor, sempre ferino, ela aborda pensamentos racistas e estereotipados em relação ao negro e aos africanos, dialogando, majoritariamente, com uma plateia formada por pessoas brancas – que se sentem de um lado desconfortável e de outro, surpreendentemente, à vontade com o tom racista do texto apresentado, revelando sua identificação com risadas.

No Brasil, ao encontrar grande quantidade de negros na plateia do Itaú Cultural, a atriz buscou em sua estreia na MITsp trazer um pouco mais de leveza ao tom ácido de sua montagem, que ganha mais potência quanto mais brancos estiverem presentes.

Foi curioso ver sua cumplicidade com os negros presentes ao oferecer apenas a estes champanhe em determinada cena. Um branco na plateia chegou a pedir a bebida, que foi negada pela atriz, desconstruindo a ideia de privilégios comumente vigente.

A atriz ainda desconstrói em seu espetáculo a ideia de peças “sofisticadas” e “internacionais”, debochando até mesmo de sua competente “banda de jazzistas brancos”. Afinal, são esses tipos de espetáculos que costumam ser referendados em grandes festivais teatrais mundo afora.

Diante de seu olhar crítico, nada está imune ao seu humor ácido, nem mesmo o teatro pós-dramático que faz, e muito bem feito por sinal. Como ela própria diz, é a rainha do pós-drama. E é mesmo.

Ntando é uma grande atriz. E isso fica palpável sobretudo na primeira parte do espetáculo, quando ainda está branca. E ela mostra sua potência como cantora (e roqueira e destruidora das razões dominantes) quando surge na segunda parte, já negra e ainda mais potente – o processo de desconstrução da imagem branca para a negra no fim do primeiro ato é impactante e revelador de suas singularidades.

E a atriz por fim conclama poder ser quem quiser, sem o filtro cruel do racismo que ainda habita à espreita por aí. Sem dúvida alguma, Black Off é um dos melhores espetáculos da quarta edição da MITsp. Uma peça mais que necessária e pungente. Que desconstrói tudo ao se colocar como o reverso do racismo.