Texto sobre o espetáculo Avante, Marche!, escrito por Ruy Filho (revista Antro Positivo)

Apenas o ar. E o quanto sua existência ou não determina aspectos de nossa humana sociabilidade. Respirar pode parecer um pretexto narrativo simples demais, e muitos poetas já se dedicaram a entender como tal processo involuntário se apropria da existência, de modo a ser mais do que meramente inspirar e expirar. É preciso pensar sobre a respiração para trazer consciência ao gesto, para interferir sobre ela; ou é o próprio corpo quem nos recorda sua execução, ao gritar sua urgência e falta. Não existimos sem isso. Não sobrevivemos sem ar. E é no limite da falência física desse contexto impositivo que o velho trombonista de uma orquestra de sopro tem sua realidade transformada. Pulmões que não respiram o suficiente, o ar que não lhe alcança. Parte Pirandello, portanto, de O Homem com a Flor na Boca; muito deles mesmos, o trio Frank Van Laecke, Alain Platel e Steven Prengels, que, reunidos novamente, se voltam ao ambiente da música e orquestra, tão caro, desde seus espetáculos de décadas atrás, para construir uma micro-representação da sociedade e das relações.

Confrontando o próprio corpo em processo de destruição, o homem busca lampejos de dignidade nas últimas fileiras da orquestra. Resta-lhe tocar os pratos junto à percussão. Como se o ar estivesse disponível a todos, menos a ele. A subversão necessária para aceitar tal condição provoca-lhe toda sorte de emoções. Caminha por entre idiomas, como quem permite ao pensamento liberdade plena. Afinal, os idiomas possuem características próprias de materialização pela retórica, manifestando leituras particulares sobre o que descrevem e atingem. Entre a raiva acusativa e a doçura convidativa, gritos e lamentos estruturam emocionalmente o homem, enquanto sua identidade se esvai e precisa buscar nos mínimos sentidos das palavras o fôlego para se reconhecer vivo. Tanto quanto o ar, o pensamento não pode não existir. É incontrolável. E pensar em voz alta, aos microfones, é, por conseguinte, ater-se ao corpo como amplificação da própria presença, gesto desesperado por continuar ali.

Tudo se passa durante os ensaios de uma sinfonia de Gustav Mahler, compositor tcheco-austríaco do início do século passado, responsável por trazer a música à Modernidade, cujas composições se voltaram sobretudo à criação de obras mais sombrias e melancólicas. Assim, o ex-trompetista toca o que seria seu próprio funeral, prepara seu cortejo de despedida simbólico, enquanto a orquestra busca não se despedir e continuar. Ele insiste, e quase é ignorado frente uma ordem estruturada por comportamentos estabelecidos e convenções. Não sendo as palavras suficientes para mudar as pessoas, então dança. As aproximações se recuperam momentaneamente, aos pares, aos espelhamentos, somando-se ao outro em um diálogo físico. O outro expandindo o gesto e a possibilidade de existir do homem como se fosse a respiração que lhe falta. Dançar é seu respiro último, sua vitória momentânea, portanto; sua maneira de confirmar o corpo como ainda possível.

Apropriando-se de outra característica de Mahler, a forte presença do coro em suas composições, o homem é apresentado à sua despedida da orquestra. Eles “cantam” como se fossem os próprios instrumentos, um coral de sopros humanos em vozes instrumentais, cabendo ao ex-trombonista o destaque maior na execução da melodia.

Avante, Marche! é como uma sentença de ordem que estrutura o movimento coletivo até torna-lo militarizado. Mas também um sentido ao homem solitário para o seu deslocamento a outra direção. O quanto cabe insistir e resistir é a grande questão. Assim, o espetáculo é também um manifesto sobre o esfacelamento do pertencimento e da resistência, e que se amplia para além dele mesmo, como metáfora das próprias discussões quais provoca, ao integrar dezenas de músicos e maestro locais em cena.

Como é comum aos espetáculos de Alain Platel, as cenas centrais nunca são necessariamente as mais importantes. Estão ali para sustentar o acontecimento, nem sempre para ampliar a narrativa. Tanto quanto confunde propositadamente as linguagens da dança, teatro, performance e música, também o faz com cenas circunscritas  e aparentemente aleatórias, muitas vezes mais elucidativas aos conceitos explorados. São os movimentos laterais, então, que esclarecem a micropolítica da sociedade representada. Portanto, é preciso escolher o que assistir em cada instante, e perceber não caber a experiência pelo todo, mas, e sobretudo, ao próprio gesto do espectador em optar como pertencer ao espetáculo e resistir aos deslocamentos e desvios fundamentalmente poéticos.

Vivenciamos, de maneira surpreendente, uma época assustadora de anulações do modos de construções culturais de reconhecimento e pertencimento, enquanto perde-se muitas das conquistas e possibilidades de ação. Frente ao espetáculo do Les Ballets C de la B, é impossível não trazer para si a falta de ar e isolamento. Somos ou estamos, ainda teremos que descobrir/escolher, o corpo em estado de resistência. Podemos insistir em ser trombonistas, limitarmo-nos aos pratos ou deixar a orquestra. Mas com a consciência de que ela continuará. E certamente pior sem nós.