Na mesa sob o título “Dissensos à esquerda”, foi acirrado o debate entre os professores Ivana Bentes e Patrick Pessoa, de um lado, e o jornalista Lúcio Flávio Pinto, de outro

Por Alvaro Machado

As posições divergentes afloradas na mesa-redonda número 2 da MITsp, na última quinta-feira, traduziram à risca a questão proposta em seu título, “Dissensos à esquerda: crise da representação como processo público”, realizada com mediação de Patrick Pessoa, crítico teatral, dramaturgo e professor de Filosofia da Universidade Federal Fluminense.

A primeira convidada, a amazonense Ivana Bentes, docente da Escola de Comunicações da Universidade Federal do Rio de janeiro (UFRJ), e que em 2015 assumiu a Secretaria de Cidadania e Diversidade Cultural do governo Dilma Rousseff, incluiu em sua fala críticas contundentes às oscilações políticas da ex-mandatária, às concessões demasiadas a lobbies e à sua falta de habilidade na composição da base política governamental. Os exemplos foram oferecidos para sublinhar as atuais diferenças desorganizadoras no interior da esquerda brasileira. Ivana destacou, em sua fala, o exemplo das manifestações de 2013 em todo o País, e elogiou, nestas, o sentido de real “convivência com o outro” em eventos caracterizados em grande medida por anonimato: “Foi tudo muito mais interessante do que descreveram muitos setores da esquerda, que classificaram aquilo como ‘o ovo da serpente para o impeachment da presidenta Dilma’. Aos poucos, porém, a partir daí construiu-se uma legitimação da violência contra as manifestação públicas e, quando a esquerda saiu das ruas, a direita tomou rapidamente o seu lugar, pois a política tem horror ao vazio”, lembrou. Ivana apontou como lema geral para Junho de 2013 “Desunidos venceremos”. Porém, o desmantelamento das esquerdas desde então teria sido tão grande que, segunda ela, hoje poderia ser substituído pelo paradoxo “Derrotados venceremos”.

Destacou, ainda, a mudança de linguagens estéticas e a disputa narrativa advindas desses movimentos, com Mídia Ninja e outras agências alternativas. “Dizem que o chamado ‘ativismo de sofá e o clique-ativismo’ não significa nada, mas, ao contrário, mandou as pessoas às ruas em 2014, e também em 2016, com uma hashtag que assumiu poder de partido, o ‘Vem para a rua’“. Criticou a “futebolização” do campo político em uma espécie de Fla X Flu e as campanhas de ódio ao político: “Se você odeia jornalistas, torne-se um jornalista; se odeia políticos, torne-se um deles”. Mencionou, também, a vitória narrativa das esquerdas na construção do termo “golpe”, adotado hoje, segundo ela, por toda a imprensa internacional. “Ao mesmo tempo, William Bonner e o Jornal Nacional criaram uma novela em tempo real para promover a demonização do governo Dilma”.

Ivana sublinhou que os setores culturais assumiram, desde 2013, uma dimensão de politização inédita no País, capaz de ajudar a pensar “uma outra esquerda para além da crise”. “Estamos num momento de grande renovação de linguagens e de se ‘discutir a relação’ entre as esquerdas do Brasil. Mas em breve também discutiremos a relação desta com os outros grupos mais conservadores, mesmo que ainda se esteja conversando muito em nível de porrada e violência”, disse.

 

O rapper, romancista e empreendedor cultural paulista Ferréz, da região do Capão Redondo, também destacou os “novos acontecimentos” [referidos por Ivana Bentes], porém não mais em manifestações da avenida Paulista etc., mas na periferia que conhece bem. “Eles acontecem de maneira diferente do que vemos por aqui [no centro], tanto em conteúdo como nas formas de reação a eles. Nós temos os saraus, as sessões de hip-hop, os eventos de literatura, todos acontecendo um tanto à parte do sistema. Tivemos muitas dificuldades com o governo anterior, mas ainda assim achávamos esse governo mais próximo da população. Hoje temos seis ministros arrolados em processos”. Concordou com a fala de Ivana Bentes ao assinalar que “há muitas novas formas de luta na rua hoje, com lutas individuais já no campo das aparências, e que incluem desde soltar os cabelos e colocar tatuagem até ‘rappar’ e assumir outras atitudes, ficando para trás a coisa do PC do B etc.”. Segundo Ferréz, “as novas gerações são nossas aliadas e não assumimos culpa de nada, pois foram as elites que não deixaram Dilma governar, deixando de injetar dinheiro no sistema”. “Na última eleição municipal, foi tanta a massificação, tanta mídia despejada, que um amigo meu disse que quando chegou à cabine de voto só lembrava do número de João Dória”, disse. Para o rapper, a arte sempre está associada à dimensão política: “arte em conjunção com militância tem tudo que ver, cem por cento, e o brasileiro é bom, mas, quando também faltar a comida para os filhos, a reação vai ser outra”. “Assim como o nazismo massacrava os judeus, o governo brasileiro rouba o povo diretamente há muito tempo, não só no caso de escândalos de corrupção, mas na administração de um relógio de água, por exemplo, que passou de R$ 12 para R$ 120, e para R$ 300 em casos de relógio de luz; o povo não tem como sobreviver a isso”, afirmou.

As alternativas populares estão sendo retiradas progressivamente, segundo o cantor, que exemplificou com a atividade de motoboy, surgida há anos como possibilidade de ganhos, mas que hoje estaria plenamente encampada pelas empresas, de médias para cima.

“Hoje esse desmonte foi transferido para o campo da educação, da informação e do conhecimento, para que as pessoas não possam galgar destino nenhum, é simples assim. Sessenta por cento da população brasileira está endividada, e junto a um crédito caríssimo. E nem adianta mais se formar universitariamente, pois nas ‘caixinhas’ fechadas, de escritórios de advocacia, ou de consultórios de psicologia, por exemplo, não deixam ninguém novo entrar, só mesmo aqueles que herdaram algo do poder antigo”, concluiu.

Lúcio Flávio Pinto, veterano jornalista paraense, proprietário do quinzenário Jornal Pessoal, iniciou sua fala com comentário sobre o sistema bancário privado no País, que sobrepujou mesmo o Banco do Brasil, segundo ele, porém “não por competição direta, mas pela implosão de toda a estrutura estatal brasileira nos últimos anos”. Descreveu a si mesmo como “um jornalista, e portanto ‘escravo dos fatos’, ou seja, do fato concreto, do qual se vai inferindo contextos explicativos”.

Para Lúcio Flávio, para entender o Brasil atual, “mais importante que o marco histórico de 2013, citado pela professora Ivana Bentes, foi o marco de 2002, pois então um sociólogo da USP, chamado ‘o príncipe dos sociólogos’, encerrava seu mandato de oito anos com a oportunidade rara para o Brasil de deixar em seu lugar um operário, um homem do povo, em lugar, por exemplo, de um membro da mais antiga elite do país, como Fernando Collor”. “Mas (…) então chegou o novo Lula, o Lula Paz e Amor, slogan vencedor formulado pelo publicitário Duda Mendonça, o real inventor desse marketing pago com depósitos em contas no Exterior”, segundo Lúcio Flávio. “E em lugar de transformar profundamente a sociedade, em 2002 ‘o novo Lula’ implantou soluções cosméticas e uma política econômica de premissas desastrosas, incluindo ‘renúncia ao passado’ semelhante à de FHC”, afirmou, para lembrar, em seguida, as assessorias diretas prestadas pelo economista Antônio Delfim Netto ao governo Lula, bem como a “retirada de cena estratégica desse brilhante economista, responsável pelo milagre econômico da ditadura militar brasileira”, quando da assunção da presidenta Dilma ao poder. Assinalou, ainda, a multiplicação de bilionários brasileiros nas listas da revista Forbes a partir dos governos Lula e Dilma, segundo ele com o exemplo significativo de um falso milionário da magnitude de Eike Batista.

A fala de Lúcio Flávio foi refutada, logo em seguida, pelo mediador Patrick Pessoa, apoiado em observações de Ivana Bentes. “Um bigodudo alemão [Karl Marx] já disse que ‘não há fatos, só interpretações’, e assim acho que de início temos neste debate um primeiro nível de batalha discursiva, que teria de se dar em torno da noção de fato. Ivana e Ferréz apresentaram as pessoas nas ruas, ou seja, a experiência subjetiva das pessoas nas ruas, nas manifestações e na cultura da periferia, em fatos que de alguma forma estão relacionados ao modo como as pessoas subjetivamente experimentam a realidade, se piorou ou melhorou etc., e isso é uma possível compreensão do que é um fato, com a relação direta com a realidade não sendo mediada por um discurso superior e pretensamente objetivo do que é um fato, como apresentado normalmente, como informação privilegiada e argumento de autoridade”. “Dá para falar em fatos ou é preciso falar, antes, em fatos confrontados a uma produção ideológica?”, perguntou o crítico e professor.

O jornalista paraense respondeu com a memória histórica de pertencimento de Karl Marx às elites econômicas e ao fato de o pensador jamais ter pisado no interior de uma fábrica, ao contrário de seu parceiro Friedrich Engels, entre outras argumentações.  A maioria do público presente tomou partido das posições de Pessoa e Bentes e apontou, ainda, misoginia na fala de Lúcio Flávio, no momento em que este comentou sobre “explosões de ira” de Rousseff junto a seus ministros da área econômica. Segundo o público presente ao Itaú Cultural, não haveria como comprovar ocorrências de tal natureza, incorrendo-se então forçosamente em narrativa fabular, como a praticada nos últimos anos pela imprensa de direita no País.