Texto sobre o espetáculo Por Que o Sr. R. Enlouqueceu?, escrito por Ruy Filho (revista Antro Positivo)   

O cotidiano sustenta o indivíduo provocando-lhe, sobretudo, um estado de inação. Precisa que assim seja, ou o perceberíamos, e, inevitavelmente, a reação seria atingir de volta o próprio cotidiano. É o estado de apatia manipulado e conduzido que impede o surgimento da catarse, cuja presença instituiria no ser um estado desdobrado de percepção crítica fundada apenas pelas sensações e não mais pelo racional. Assim, perceber o cotidiano é demasiado perigoso à estrutura que lhe exige. Mas não só. Também ao indivíduo não preparado para viver diferente, livre, distante desses limites e seguranças. O cotidiano, enfim, é, para além de um controle ao modo de existir comum, um constante jogo de poder entre diálogos forjados e concessões falseadas.

Foi o filósofo japonês Kuniichi Uno quem atualizou os preceitos de biopoder ao demonstrar no contemporâneo a condição de “deixar sobreviver” imposta ao indivíduo. A seu ver, os sistemas de poder precisam de pessoas capazes de produzir e criar possibilidades e desdobramentos a eles mesmos, como meio de renovação e sustentação, sem que conquistem independência e liberdade. Isso se provoca pela instituição de uma rotina servil, pela qual o indivíduo tem sua condição de sujeito social ampliada, em uma aparente participação vitoriosa frente à realidade estabelecida.

Por que o Sr. R. Enlouqueceu?, espetáculo criado por Susanne Kennedy junto ao Münchner Kammerspiele, importante teatro alemão, parte do filme de Fassbinder, de 1970, quando a diretora ainda não era nascida, para retratar um homem sem grandes interesses e motivações, em uma rotina banal limitada às convivências no trabalho e familiar, que confronta a própria inércia de modo violento e trágico contra todos, e a ele, inclusive. A pergunta no título não requer uma resposta simplista objetiva. Surge como um desdobramento da ausência de utopias que construíram um indivíduo esvaziado e frio, ao tempo em que as deformações se deram lentamente pelo acúmulo dos espaços emocionais tomados por frustrações e tédio. Se algo lhe existe em excesso, são as concessões diárias decorrentes de sua servidão ao sobreviver de um cotidiano asséptico.

Alguns desses aspectos têm sido investigados com insistência por Susanne em seus espetáculos recentes. O tempo expandido das cenas; os longos intervalos entre falas e reações; personagens quase estáticos, apresentados quadro a quadro; o contar a história sem lhe permitir formas de envolvimentos emocionais. Nada nisso é fácil. É preciso que o espectador se provoque ao convívio extremo, perceba o convívio estetizado e artificializado sobre o palco a partir de parâmetros não-naturalistas, quase caricatos na maneira como sintetiza o indivíduo e a sociabilidade. Entretanto, é pelo estranhamento estético que o reconhecimento do próprio espectador se faz mais incisivo. Ao buscar a simplificação máxima à representação, alcança o ordinário com eficiência e instigante singularidade. Ao provocar imediato distanciamento das representações literais potencializa ainda mais a percepção do que nos é induzido a ser entendido como próprio.

A atualidade com que inventa uma linguagem teatral provoca também o teatro alemão, tão excessivo e acumulativo em seus procedimentos estéticos e retóricos, dessas últimas décadas. Susanne supera essas estratégias, e vai além. Trata o sujeito como algo despovoado de vida, mecanizado, biologicamente artificializado, distante de qualquer sensação e incapaz de reproduzir reações. A síntese atingida em cada momento amplia o universo impessoal e estranho provocado pelo uso de vozes gravadas sem qualquer registro de sentimentos e as faces travestidas por máscaras de silicones que impõem a mesma expressão ao personagem, aconteça o que acontecer. Não se nega, portanto, a teatralidade do momento. O que redimensiona a experiência a outra condição, a de subversão da convivência esperada. É preciso aceitar sua proposição e por ela assumir serem as mais de duas horas um ruído, uma interferência.

Em Por que o sr. R. Enlouqueceu?, a diretora lapida o que tem se firmado como assinatura e cria um espetáculo verdadeiramente complexo sobre o mediano de todos nós, questionando e provocando a comodidade de nossa aceitação pela mera sobrevivência apontada por Koniichi Uno. Se o incômodo é grande por estender a linguagem do teatro ao seu limite, é de se atentar o quanto, no papel de indivíduos, quais executamos tão simplesmente, aceitamos sem constrangimento ou indisposição os estados a nós fabricados. Ou resolvemos logo tudo isso, esse tudo que fingimos não acontecer e existir, que nos impõe formas e limites de se relacionar com a realidade, ou a tendência será chegarmos ao mesmo fim de Sr. R. Para muitos; simbolicamente, isso é já um fato. Para outros, infelizmente, de modo literal, exigindo-lhe ações extremas e inexplicáveis. Por oferecer ângulos inesperados, Susanne nos auxilia a construir novos escapes críticos que inconscientemente nos ajudarão a dar conta da concretude de modo mais problematizador. O teatro, por sua provocação, então, se torna radicalmente o urgente meio de revelar e superar o insuportável.