Crítica de Cinderela escrita, por Beth Néspoli (Teatrojornal/DocumentaCena)

Fábulas têm origem no inconsciente coletivo e, ao mesmo tempo, atuam sobre o imaginário público. Nelas desejos e temores difusos são nomeados e, traduzidos em comportamentos, submetidos à normatividade de seu tempo. Quando adquirem formas potentes, permanece central a tensão entre as cores sombrias e as luminosas; se simplistas, o terror é apaziguado e a lição moral predomina. A polaridade entre pulsões e sociabilidade assim como a linguagem lúdica característica dos contos de fadas se mantêm na concepção de Cinderela que tem texto e direção do francês Jöel Pommerat e abriu a programação da 3ª edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp).

Porém, ao melhor estilo brechtiano, o ensinamento central da encenação talvez possa ser assim formulado: duvide das fabulações. As narrativas mais tradicionais podem ter perdido o prazo de validade – mesmo que continuem perigosamente à venda como patéticos vestidos bufantes de princesa – e as mais contemporâneas podem ser fruto de algum mal-entendido, às vezes menos inocente do que parece à primeira vista.

Tomando de empréstimo a metáfora materializada pela cenografia e iluminação assinadas por Eric Soyer, tais fábulas são como casas com paredes de vidro cuja transparência dá aos habitantes a falsa sensação de abertura ao mundo exterior, mas na prática bloqueiam as trocas com o ambiente. Na montagem, a madrasta e suas filhas que habitam tal casa estabelecem uma cômica conversa de surdos com quem está do lado de fora e, além disso, no melhor estilo dos irmãos Grimm, essas paredes invisíveis matam, literalmente, os pássaros que com elas se chocam em pleno voo. Preferível o porão sem janelas, de cuja escuridão habitada por sombras e fantasmas sempre pode surgir uma fada carregando uma boa ideia.

Na sinopse do espetáculo é possível ler a informação de que a mãe de Cinderela, que logo desaparece na história dos irmãos Grimm, ganha centralidade nessa versão da Companhia Louis Brouillard, criada em parceria com o Teatro Nacional de Bruxelas. Não é bem a mãe a entrar em foco, mas sim a trama tecida sobre ela pela menina ao não compreender as últimas palavras maternas pronunciadas a custo no leito de morte. Aos cinco anos de idade, ela talvez precisasse não compreendê-las e assim, a partir do que pensa ter escutado, cria a fábula na qual se enreda.  Claramente, a historinha inventada tem como objetivo proteger a garota da dor da perda, porém esse ato infantil de escapismo acarreta culpa e submissão e irá ditar o seu comportamento por muitos anos.

Nessa abordagem do universo dos contos de fadas o que está em jogo é a força da imaginação para intervir sobre os comportamentos. O poder da madrasta reside em grande parte nas crenças da enteada que, combinadas às suas, resultam na relação opressor/oprimido que não serve a nenhuma das duas.

Talvez a mais interessante intervenção de Pommerat, que assina texto e direção, esteja no modo como o príncipe salva a princesa ao final: simplesmente servindo de espelho no qual Cinderela verá refletido seu próprio equívoco. Iludido por uma falsa trama envolvendo a morte de sua mãe, o príncipe terá o papel de objeto mediador para alterar a relação de Cinderela consigo mesma e, consequentemente, com o meio em que vive. Mas o movimento de libertação vem dela, e não dele, que apenas o canaliza. Não por acaso será dele, e não dela, o sapato desgarrado que servirá de chave para a identificação dos envolvidos no encontro ocorrido na noite do baile. Interessante ainda é a alteração no atributo que faz do rapaz um príncipe, não exatamente uma ascendência nobre ou aristocrática, menos ainda um porte atlético, mas um lugar de celebridade no mundo do show business. Por outro lado, a música que escolhe para cantar – Father and Son, de Cat Stevens – reforça a possibilidade de existência de um masculino capaz de cuidar, em oposição à impotência do pai da menina em lhe dar proteção.

Uma vez resolvida a maldição que prendia Cinderela à mãe morta e a tornava submissa à madrasta e às irmãs, tudo estará resolvido e todos serão felizes para sempre? Nada é simples assim nessa encenação. Se o inconsciente de Sandra ajuda a fazer dela a gata borralheira, é sobre o comportamento da mãe adotiva que atua fortemente a outra face desse arquétipo feminino da princesa como signo da enamorada jovem, bela e amada para sempre. Não é apenas o patético e obsessivo esforço da madrasta para se enquadrar nessa ficção estática que o espetáculo ressalta, mas também a ansiedade, a agressividade e a depressão consequentes. Coube a ela, na adaptação do grupo, ter o perfil traçado com as linhas das mais arraigadas imposições sobre o feminino.

A abordagem crítica não implica perda de humor, evidente, por exemplo, no desenho do perfil da fada madrinha atrapalhada. De modo bastante coerente com a crítica à rigidez dos papéis, ela está disposta a abrir mão de seus poderes em troca de se descolar do tédio de ser sempre a mesma até o fim dos tempos. A valorização da instabilidade também é mote de um jogo de palavras, bem ao gosto dos falantes da língua francesa, envolvendo o nome da menina, Sandra, o apelido que lhe dão as irmãs adotivas, cendrier (pronuncia-se sandriê), cinzeiro em francês, em referência ao cheiro ruim exalado por seu corpo mal cuidado, e Cendrillon (Cinderela em francês, pronuncia-se sândrion) que é como o príncipe a chama ao entender errado o seu nome. Não é apenas uma brincadeira com sonoridades similares, mas também um jogo de deslocamentos. Quando Sandra se autonomeia cendrier, ao se apresentar ao príncipe, ela assume o papel que inventou para si mesma. Passar de cendrier a Cendrillon tem como efeito (mágico) o movimento de libertação da fábula para voltar a ser simplesmente Sandra, uma mulher com alegrias e limitações.

Foto: Estúdio Zut.