Texto sobre o espetáculo A Tragédia Latino-Americana e A Comédia Latino-Americana – Primeira Parte: A Tragédia Latino-Americana, escrito por Valmir Santos (Teatrojornal/DocumentaCena)

A compilação em prosa, poesia, conto, letra e até HQ faz com que tudo seja processado como texturas cênicas em A Tragédia Latino-Americana, navegação ficcional do diretor Felipe Hirsch e dos criadores do coletivo Ultralíricos pela realidade da América Latina e Caribe. E como qualquer expressão que valoriza o pensamento em arte e a intervenção crítica, a literatura pode constituir valiosa bússola.

No caso do continente africano, em contraste, essa potência se revela na tradição oral, anterior à grafia. Escrever, falar e pensar são atos corporais e literários mais complexos e dinâmicos do que o suposto exotismo tropical lançado sobre países subdesenvolvidos ou emergentes segundo a métrica das economias capitalistas.

O espetáculo desvia da expectativa de acolhimento ao boom latino-americano que, nos anos 1960 e 1970, representou tomada de consciência e afirmação identitária em países subdesenvolvidos. Em vez de saudar o realismo mágico de Gabriel García Márquez, Julio Cortázar, Carlos Fuentes e Mario Vargas Llosa, entre outros, o palco irradia vozes de escritores convictamente marginais e esteticamente radicais, a maioria de gerações posteriores.

São fontes do texto espetacular as ideias e os estilos garimpados em obras do chileno Roberto Bolaño, do mexicano Gerardo Arana, do uruguaio Leo Maslíah e dos argentinos Salvador Benesdra e Juan Rodolfo Wilcock – nomes pouco familiares a nossa escuta latina contemporânea, exceção a Bolãno, de notória repercussão crítica, morto em 2003 e para quem a literatura ultrapassa o espaço formatado da página do livro para se instalar de fato no território insondável e laboral do risco.

É desse desejo explícito pela palavra e suas derivas que a montagem organizou o mapeamento, tomando pelas mãos, ainda, autores brasileiros como os fluminenses Lima Barreto (reconhecido postumamente, tolhido pelo preconceito de raça, de classe e de insubordinação ao português castiço) e Marcello Quintanilha, quadrinista; a paraibana Dôra Limeira; o polonês Samuel Rawet, aqui radicado desde a infância; e o paulista Reinaldo Moraes, entre outros.

Time tão heterogêneo reflete tempos de angústia e derrisão. Alguns dos escritores evocados colocaram ponto final à própria vida. Em regra, as ficções soam provocadoras e a cada vez que um ator as enuncia, parece filosofar em português ou espanhol, idiomas entranhados na peça.

Passeamos por estações cênicas em abordagens sociais, políticas, históricas, religiosas, subjetivas, autobiográficas e metaliterárias. Os dois atos – As Cabeças e As Carnes – pretendem e compõem um corpo geopolítico por meio de uma dramaturgia de modulações cruéis em relação ao indivíduo, a coletividade e o meio. Ou trágicas, na repetição de fatos como farsa.

Crítica, ironia e bom humor são assumidos desde o número coral de abertura, apropriação tropicalista com um quê de chanchada. O prólogo do romance do cubano Guillermo Cabrera Infante, Três Tristes Tigres, ganha atualização quanto ao contexto patriarcal-coronelista brasileiro, a amoralidade nos nomes dados aos bois em 515 anos de “Descobrimento”.

Se esta análise se ocupou até agora da matéria-prima impressa, contagiada pela admirável conjunção de textos, A Tragédia Latino-Americana escapa à fixação verborrágica, dançando pretextos e pós-textos. Como evolução da série Puzzle, desdobrada em quatro partes desde 2013, Hirsch afasta-se cada vez mais do perfil de encenador que moldou para si, atraído pela cultura anglo-saxã e profundamente zeloso no acabamento visual. Ele encerrou o ciclo da Sutil Companhia de Teatro, que fundou ao lado de Guilherme Weber, ora no elenco. E os últimos trabalhos que dirigiu embutem mais experimento, assumem a possibilidade do precário, da instabilidade dos elementos estimulada pela parceria continuada com a cenógrafa Daniela Thomas e com o iluminador Beto Bruel.

Tal desmonte tem aproximado o projeto artístico de Hirsch de atores autorais, dispostos ao bom combate da criação, investidos de certa esperança militante nas raias expandidas do teatro contemporâneo. Atribuímos ao contato com a dramaturgia do norte-americano Will Eno, poeta para a cena de quem encenou peças como Temporada de Gripe (2003), o ponto de partida da atual era de incertezas que torna o encontro do público com as peças assinadas pelo diretor uma experiência de precipitações poéticas.

A direção de arte de Daniela e Felipe Tassara habita o palco como uma instalação. Atores avançam por entre perpendiculares, lateralidades e constantes pontos de fuga, numa deambulação pelo vazio premido por blocos de isopor, simulacros de chãos, muros e horizontes. Movediças pedras brancas como o desafio da primeira linha na página ou na tela.

Corpos, figuras e presenças fluem libertos na cena da escola primária com Camila Márdila; na anticoreografia de Danilo Grangheia; no solo musical de Georgette Fadel, a lembrar o registro de Elis Regina; na condição da epígrafe em que Magali Biff assevera a mesma inteligência do texto para essa inscrição epistemológica à qual o público adere com prazer; ou na sequência do casal de antípodas vivido pela chilena Manuela Martelli e pelo argentino Javier Drolas.

Juntam-se ao painel procedimentos da materialidade da palavra nas passagens vinculadas à tradução e à legenda simultânea. Ou na leitura da insultante Carta a un Escritor Latinoamericano, do uruguaio Maslíah, desferida pela Asociación de Críticos Literarios de Europa e pelo Tribunal de Geopolítica Literaria, duas hipotéticas e risíveis frentes de aculturação. São efeitos que deixam clara a ruptura com dogmas e evangelizações quando o plurilinguismo, inclusive estético, veio para ficar e conversar de perto com as culturas autóctones.

Na segunda das quatro sessões apresentadas durante a MITsp, no Sesc Anchieta, era evidente que algumas cenas ainda não haviam encontrado seu ritmo em termos de atuação e espaço – a temporada abre no próximo dia 17 na mesma sala. Ritmo e tessitura que, ao contrário, fizeram os músicos da Ultralíricos Arkestra, dirigida por Arthur de Faria (compositor gaúcho entusiasta de parcerias no Mercosul), erguerem das coxias, ao vivo, um assemblage sonoro por meio do qual a equipe da montagem entra em campo com metade do jogo ganho. A música é dramaturgia, lavra a ação.

Foto de Caio Nigro.

 

 

 

 

 

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