Crítica sobre o espetáculo Ça Iia, por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda? / DocumentaCena)

A política pulsa. Tensiona nervos, acelera o sangue e diz respeito a todos nós.  Ça ira, espetáculo do francês Joël Pommerat, com a Compagnie Louis Brouillard, conduz o público para o núcleo dos acontecimentos que urdiram a Revolução Francesa. É um estímulo ambicioso, que insere a plateia no coração dessa aventura humana, em turnês temporais que projetam o ontem no hoje e trafegam em várias camadas. Em 4h20, três atos, o dramaturgo e encenador leva atores e plateia a uma exaustão revigorosamente crítica, depois de uma avalanche de palavras encarnadas de ações da política e do poder. Do desejo de mudança do homem no seu tempo.

A peça inicia com a convocação dos Estados Gerais em 1788 e segue até a noite de 4 de agosto de 1789, quando os privilégios são abolidos e é legitimada a igualdade de todos os cidadãos. Marco da democracia moderna, esse período retraça o estar no mundo. Há uma profusão anárquica na exposição de fatos e rumores que estremecem a cena. Os espaços do palco e plateia, juntos, acolhem as ações: a residência do rei em Versalhes, o salão dos estados gerais e um distrito eleitoral e a assembleia dos bairros.

O público incluído na ação pode ser encarado como a multidão indecisa, que acompanha e muda de posição a partir das atuações dos revolucionários conservadores, moderados ou radicais. Os atores usam microfones, as intervenções mais violentas que ocorrem fora da cena são materializadas no som. E a iluminação sombria cria os climas dos espaços públicos, inclusive com as luzes da assistência acesas, e os salões privados para os nobres.

Lugar da ficção, a plateia assume a função de assembleia nacional. Mesmo que não seja a invenção da pólvora, a configuração de alguns atores espalhados entre o público é potente. Durante a peça, intérpretes se destacam para falar, outros permanecem nos corredores, colaborando com aplausos, vaias e palavras de ordem. Eles atuam como representantes da nobreza, do clero, do Terceiro Estado, deputados da Assembleia Nacional e da Assembleia Constituinte. Para engrossar, o diretor também escalou atores e não-atores brasileiros, falantes de língua francesa.

Durante o programa Pensamento em Processo, encontro de artistas com o público da MITsp efetivado no Itaú Cultural, no sábado, o diretor explicou que não separa as imagens das palavras em suas produções “para mim é uma coisa única”. E que Ça ira não é um espetáculo político, mas sobre política.

Na sua acepção mais ampla, a política está metida em tudo. Sua razão de existir é o dissenso. A possibilidade de troca simbólica de comunicação, num jogo argumentativo, declarativo, em que princípios e crenças são defendidos num embate de ideias e posições diferentes, numa negociação em que entram muitos verbos, inclusive brigar.

Se o poder é um princípio na política, a justiça ou a liberdade são dispositivos que podem produzir mobilização. O que não é possível esquecer é que todos os seres têm interesses pessoais e coletivos.

Cada personagem de Ça Ira está implicado com sua luta. E para isso gritam, insultam e fazem da oratória uma paixão algumas vezes risível. Integrantes do Terceiro Estado conquistam o direito de fala pública e política, até então dedicado à nobreza, clero e parlamentos. Nessa energia revolucionária salta a intransigência que produz cenas e posturas no elenco que faz ferver o ambiente.

Pommerat convocou para esse campo de batalha não as grandes figuras e mitos históricos. Mas indivíduos desconhecidos que colaboraram para a mudança de rumo. Isso também ajuda a superar o aspecto mais documental. O nomeado é Louis XVI, que enfiado em ternos de Yvain Juillard, defende que é preciso equalizar os impostos, com a inclusão de nobres e do clero como pagadores.

Os discursos ideológicos são incendiários e conduzem para a invenção da democracia. A partir de ideias e visões de mundo contrastantes, são projetados valores e representações de demandas morais e filosóficas. Ao dobrar-se sobre o passado, o encenador francês questiona o futuro.

Mas o diretor é sarcástico com a sociedade do espetáculo. Inventa uma comentarista de uma emissora espanhola, para reforçar que o mundo assiste à Revolução Francesa ao vivo. Ou nas cenas em que anônimos repreendem o rei, por qualquer coisa, e para depois ser fotografado com o soberano e desmaiar de emoção.

Brasil e mundo dos imigrantes

Na sexta-feira da estreia do Ça ira no Brasil, o país foi afetado pela condução coercitiva do ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva para depor na Polícia Federal, em mais uma etapa da Operação Lava Jato. Essa atuação provocou debates durante todo o dia e levantou dúvidas sobre a parcialidade do episódio. “Nós precisamos ter provas de simetria, provas de que essas instituições agem de maneira simétrica contra qualquer ator político”, comentou o filósofo e professor da USP Vladimir Safatle sobre o assunto.

Com essa medida da PF e seus desdobramentos, a reação de Lula e seus aliados, o espetáculo ganhou outras linhas com o real, e possibilitou traçar outros significados com a realidade brasileira, a república e a democracia. Associações e paralelos da encenação com a crise das instituições brasileiras, avanço reacionário, o poder dos grupos dos “3B” – o boi, a bala e a Bíblia – foram inevitáveis.

Mas a ferida de retrocessos se espalha pelo mundo capitalista. Ça ira também aponta para o fluxo de pessoas deslocadas, principalmente as que fogem das guerras. Do seio da revolução francesa encenada é possível vislumbrar uma vigor reivindicatório, a partir da crise dos refugiados e migrantes que chegam à Europa

O encenador investe na força da palavra e na presença dos atores para compor as espessuras desse jogo, entre coro de vozes dissonantes.  O exercício e o aprendizado do poder democrático são árduos e dão sinais de fadiga. Mas o poder de mudar a sociedade, martela Joël Pommerat em Ça ira, está nas mãos de todos.