Crítica sobre o espetáculo Still Life, por Ruy Filho (Agora Crítica Teatral)

Um homem, e depois o Homem como alguém. O sublime, fortemente poético em suas sugestões, estetizando o que se revelará ser céu, ser mar, superando a condição de ser também uma estrutura cenográfica. O espetáculo Still Life, do artista grego Dimitris Papaioannou é um tanto cena, dança, performance, artes visuais e poesia silenciosa que se utiliza das imagens contrastadas entre corpo e ambiência. Buscar definir o espetáculo, além de desnecessário, seria reduzir o impacto da experiência oferecida. Deixemo-lo ser apenas um acontecimento, o que já é muito, dada a potência das escolhas. A obra criada por Dimitris propõe outra espécie de diálogo com o espectador, mais subjetivo e menos conclusivo.

Ao representar homem e mundo, o espetáculo provoca diversas urgentes discussões. Só é possível pensarmos no homem como alguém e não algo se compreendido como deslocado daquilo tipo por Natureza. Não negando a naturalidade humana, esse homem diz respeito ao ser traduzido e individualizado, ou seja, o pertencente e construído por sua história, costumes, escolhas. Em outras palavras, o homem se desloca da natureza ao traduzir por si a própria ideia de cultura. Etimologicamente, Cultura vem de cultivo, portanto sua origem está mesmo condicionada à Natureza, por isso a confusão. Em um segundo instante, outros sentidos se colocaram ao termo, como produzir, trabalhar, cuidar; e o Homem passou a lidar com o sentido de cultivar algo em seu entendimento de proteção, relacionamento e habitação, até expandi-lo ao outro, gerando a necessidade de espaços comuns, físicos e simbólicos. Todavia, as relações exigem regras, e ao acúmulo delas surgiu o que hoje denominamos por civilidade. Assim, a Cultura existe ao redor e em nós, ao tempo em que afirma o eu e disciplina a estética do eu, submetida que está às ordens e morais.

O homem, ou melhor, o humano representado em Still Life, a partir do mito de Sísifo, do escritor e filósofo Albert Camus, sucumbe aos limites de sua condição cultural, da existência limitada ao exercício contínuo da ação repetitiva, cuja finalidade justifica apenas o próprio existir e nada mais. Um círculo ininterrupto de ação e reação, desprovido de transformações ao ser. Em cena, homens e mulheres retratam a modernidade desse aprisionamento produtivo ao gesto, enquanto sobre eles o céu se forma em fumaça contida por um imenso plástico. O céu, e depois o mar, possuem suas próprias narrativas, levando ao homem um existir ainda menor.

Nessa separação, a Natureza se coloca amoral, impositiva, sem coerência externa a ela e não necessita de aceitação, pois não possui desejo de tradução algum. Sua construção é mutável e se reformula constantemente como artifício de sobrevivência. O efeito poético é radical. Provoca ao espectador deslocamento cognitivo e memorial. Todos carregamos representações de céu e mar, mas a versão oferecida por Dimitris, ao não se querer exageradamente literal, acaba por ampliar o reconhecimento por sensações e não descrições. O que leva a um encontro mais profundo, particular e verdadeiro.

O homem em cena reconhece primeiro o próprio corpo, enquanto este se reafirma sistematicamente, distorce e reinventa. E, assim como o gesto ininterrupto do mito de Camus, que ao empurrar uma rocha ao topo da montanha a vê rolar novamente para a base, necessitando recomeçar o trabalho, o corpo sempre retorna à sua forma original, em uma espécie de limite e aprisionamento. Ganham vozes, quando os performers arrancam fitas dos chãos, cujos ruídos, acumulando-se e sobrepondo-se deixam de ser sons e passam a sugerir o surgimento de um dialeto comum e particular. Até terminarem civilizadamente sentados ao redor de uma mesa absorvendo a própria natureza naquilo que ela é capaz de ser dominada, o alimento. Retornamos, então, ao início, quando a Cultura, portanto o convívio, a civilização, surgia como desdobramento etimológico da definição de Natureza. O home, portanto, ao buscar cada vez mais sua independência, acaba sempre por reafirmar a Natureza como princípio para se explicar.

Dimistris Papaioannou elabora em Still Life um complexo jogo sobre o mundo e o existir. Imagens fortes, inesperadas, aparentemente simples e que escondem complexidades técnicas realmente impressionantes. Belo e urgente, o espetáculo surpreende com a facilidade com que leva o espectador a se silenciar, em uma entrega que só pode ser compreendida como um retorno ao mais profundo de si mesmo.

Ao fim, é curioso assistir ao público levantar e se aglomerar à mesa, onde os atores estiveram, para devorar os restos deixados. Enquanto saboreiam as azeitonas, penso o quanto ainda pode ser dito ao espetáculo sobre a falência dessa civilidade contemporânea que recusa a Natureza do homem e pragmatiza a Cultura por distorções e dominações políticas, econômicas e sociais. As inquietações de Still Life parecem mesmo se desdobrar em sensações sem fim.