Crítica sobre o espetáculo Cidade Vodu, escrito por Mateus Araújo (Agora Crítica Teatral)

A promessa de um recomeço foi o que trouxe centenas de haitianos para o Brasil, logo após o terremoto que devastou o país caribenho em 2010. O Brasil que acolhe; o Brasil com dificuldades econômicas, mas receptivo. Era assim que eles viam nosso país, como possibilidade de viver com liberdade e respeito, integrado, trabalhando e podendo reconstruir suas vidas do zero. Mas a realidade foi e tem sido diferente. Aqui, homens e mulheres se depararam com preconceitos e frustrações.

A voz dessas pessoas e a experiência deles no nosso país é a condução de Cidade Vodu, espetáculo do grupo Teatro de Narradores, apresentado na Vila Itororó, em São Paulo. O trabalho nos convida a uma excursão densa sobre a busca e o desejo de ser livre, tomando como norte a história de revolução e de sofrimento do povo haitiano. A peça, com mais de duas horas de duração e direção de José Fernando de Azevedo, fragmenta em sua narrativa o passado e o presente, guiados por um personagem misto de morte e bufão, narrador dessa saga. Uma figura estranha, carregada em teatralidade (os gestos e a voz expansivos, o rosto pintado com uma máscara branca), elo entre plateia e palco.

Os atores do Teatro de Narradores, Renan Tenca Trindade e Teth Maiello, dividem a cena com quatro jovens do Haiti, que vieram para o Brasil após o terremoto que devastou o país caribenho em 2010. No primeiro instante, estamos diante de um recorte ancestral da história haitiana. Elementos da religião sincrética que une a fé num Deus e o louvor aos antepassados (o vodu haitiano tem a mesma raiz do candomblé), como a musicalidade e símbolos de entidades. É um ambiente doloroso – contexto que vai estar presente em quase toda a apresentação – com cenas de violência: do homem enforcado à mulher estuprada.

Dali em diante, vamos sendo apresentados a situações de abuso e exclusão, e de alternativas de sobrevivência encontradas por esses homens e mulheres “expulsos” de suas terras. Alternativas essas que muitas vezes obrigam ao silêncio essas pessoas. Há uma cena bastante emblemática no espetáculo, na qual crianças são alfabetizadas por soldados brasileiros com a música infantil Abecedário da Xuxa.

Há, porém, dificuldade para se acompanhar e interagir com o espetáculo, devido à confusão da dramaturgia nessa fragmentação. A fusão do teatro a características do cinema parece ainda não estar afinada na performance dos atores, assim como a desarmonia da legenda – e a falta dela em muitas das cenas – se torna um problema para a compreensão do que está sendo dito.

Politização da cena

A transformação da Vila Itororó em cenário para essa narrativa reforça a condição de abandono em que um povo se encontra. As construções em ruínas dialogam com o desabamento da própria humanidade em meio às condições desumanas de um povo. “Nós somos todos iguais, é preciso que a gente entenda isso”, diz um dos atores haitianos.

Há um discurso político presente nesse olhar do Narradores com relação à xenofobia que enfrentam esses imigrantes no Brasil. Em São Paulo, por exemplo, são recorrentes as situações de violência e maus-tratos contra haitianos. No ano passado, por exemplo, um grupo de seis pessoas foi atacado com tiros de armas de chumbinho. Fatos parecidos com esse são relatados em depoimentos pessoais dos atores convidados, já numa das últimas partes do espetáculo. Aqui a possibilidade de reflexão é mais ampla. A voz dos invisíveis é amplificada, fazendo do teatro uma plataforma política necessária. Os seis haitianos assumem o papel de narradores de si e contam suas frustrações e suas experiências no Brasil, e ainda criticam e denunciam a atitude dos militares brasileiros que ocupam seu país natal – incluindo casos de estupro de meninas e mulheres adultas.

Desse modo, Cidade Vodu endossa o discurso da ação performática Em Legítima Defesa, com direção de Eugênio Lima, apresentado também na MITsp. Esse trabalho, com mais de dez atores negros em cena, dá voz aos excluídos, lança luz sobre as violências e o racismo, tomando como holofote a própria narrativa de quem sofre com o preconceito.